Flagrante
do cotidiano em um consultório médico do terceiro milênio: um executivo entrega ao doutor um
calhamaço de exames e logo fica sabendo que sua saúde não anda bem. O colesterol alcançou
a estratosférica taxa de 800 miligramas por decilitro – mesmo no futuro, uma taxa superior a 250 miligramas
indica que o sujeito vai mal –, o que faz de Roberto um candidato fortíssimo a ter um infarto fulminante.
O caso exige cuidados imediatos. Mas, ao contrário do que ocorre hoje, o médico não saca a
caneta para gerar uma prescrição. Limita-se a digitar em um banco de dados online a seqüência
de genes das células sangüíneas do executivo e a aguardar, por alguns instantes, o trabalho
de uma pequena impressora. É dali que emerge uma receita completa e específica com a indicação,
entre quase 200 remédios disponíveis no mercado, daquele que melhor interage com o paciente.
É tudo tão rápido que a tradicional consulta médica dura só alguns minutos.
Afinal, são máquinas inteligentes, conectadas a bancos de dados colossais, que se encarregam praticamente
sozinhas do diagnóstico, levando em consideração todas as características orgânicas
e genéticas do paciente, seu histórico médico, entre outros parâmetros. Transformado
em simples intermediário entre o paciente e a tecnologia, ao doutor cabe apenas alimentar o sistema com
dados de análises de sangue e tecidos orgânicos realizadas – adivinhe – por outros engenhos eletrônicos.
É o máximo em automação e customização do atendimento, num contexto em
que a prescrição de uma simples aspirina pode mobilizar e cruzar milhões de informações.
Com certeza você ainda não conhece
nenhum médico que trabalhe assim, apesar da parafernália tecnológica já utilizada pela
medicina moderna. Mas o quadro descrito acima deverá fazer parte da vida real nos próximos cinco
anos, graças a um novo ramo da ciência que une a farmacopéia às descobertas recentes
sobre o genoma humano – a farmacogenômica. O curioso é que, em vez de trazer a certeza de que, nessa
cena futurista, os serviços médicos atingirão o ápice em qualidade, a promessa de mais
automatismo na medicina só atiça uma polêmica emergente em todo o mundo: o modelo biomédico,
sobre o qual se apóiam as rotinas atuais de clínicas e hospitais – e também a produção
de medicamentos –, atende, de fato, às necessidades do homem no campo da saúde?
Eis aí um paradoxo. Enquanto a intimidade microscópica do organismo é devassada pela ciência
e mais e mais recursos high-tech são incorporados aos sistemas de diagnóstico e terapia, cresce também
a insatisfação das pessoas com os custos, o atendimento, e, sobretudo, com a promessa fria de eficácia
dos procedimentos médicos. “Em todos os setores a sofisticação tecnológica reduziu
custos e aumentou a satisfação do cliente, exceto na medicina”, diz Flávio Corrêa Próspero,
presidente da Associação Brasileira de Qualidade de Vida. Hoje as pessoas buscam muito mais os médicos
do que no passado, gastam pequenas fortunas com exames, estão quase que continuamente tomando algum remédio
e, no final, sempre descobrem que não se livraram de antigas complicações ou que contraíram
alguma das novas doenças que não param de engordar a lista oficial de moléstias catalogadas
– ela já soma 30 000 itens. Além disso, a tecnologia médica parece ter promovido o distanciamento
entre o terapeuta e o paciente, desumanizando a prática profissional e abalando uma relação
milenar associada ao processo de cura. A julgar pelo novo horizonte trazido pela farmacogenômica, esse fosso
deverá ampliar-se ainda mais quando as máquinas de prescrição invadirem os consultórios.
A noção de que há algo errado
com a medicina como a conhecemos é consensual. Falam disso usuários e críticos dos serviços
de saúde. E também os próprios médicos, tradicionalmente uma das categorias profissionais
mais marcadas pelo corporativismo. O que varia são as leituras da situação, que apontam causas
e soluções distintas para o problema. Outro sinalizador da crise que, aos poucos, se instala na área
da saúde é a corrida de usuários da medicina convencional para as chamadas terapias alternativas,
métodos de cura baseados em paradigmas que se opõem ao modelo médico hegemônico, geralmente
originárias do Oriente. Na França, estima-se que 82% dos pacientes superpõem a seus tratamentos
na medicina oficial as terapias alternativas. Nos Estados Unidos, 35% da população já freqüenta
consultórios de homeopatas, acupunturistas e outros terapeutas que não fazem uso de drogas químicas,
os chamados remédios alopatas. Inflando a onda de contestações, há uma série
de falhas que contribuem para minar a confiança de pacientes nos ritos médicos tradicionais.
Medicamentos matam mais de
100 000 americanos por ano
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Tomem-se, por exemplo, alguns números dos
Estados Unidos, o centro médico mais avançado do mundo. Ali, segundo estimativa da própria
Associação Médica Americana, a cada ano 2,2 milhões de pessoas contraem doenças
e outras 106 000 morrem devido a efeitos colaterais de medicamentos, a quarta causa de óbitos no país.
Um espanto quando se considera o rigor da FDA, a agência federal de controle de drogas. O órgão
costuma autorizar a comercialização de um novo remédio somente após uma seqüência
de estudos que envolvem milhares de pacientes ao longo de cinco ou mais anos. (No Brasil, quinto país do
mundo em consumo de medicamentos, a Fundação Oswaldo Cruz estima em 24 000 as mortes anuais por intoxicação
medicamentosa.) Nos hospitais, 98 000 americanos teriam morrido, no ano passado, vitimados por erros médicos
grosseiros. Mas Janet Corrigan, diretora de Serviços de Saúde do Instituto de Medicina (IoM), um
órgão do governo, acha que o número foi subestimado. “O erro médico tem sido ocultado”,
diz Janet. O número seria maior se computados os casos ocorridos em casas de repouso, prontos-socorros e
consultórios. Incluam-se nesse rol de problemas as queixas contra efeitos colaterais das vacinas – foram
108 000, no ano passado, apenas através do site do Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos
– e se perceberá que o raio-x da medicina oficial está marcado por nódulos e obstruções.
Seria loucura negar, sob o pretexto dessas distorções, a contribuição dos serviços
médicos à melhoria da qualidade de vida e à longevidade no mundo atual. Quem, vivendo em algum
lugar minimamente civilizado, não conhece pelo menos um caso de alguém salvo da morte ou libertado
da doença graças à pronta intervenção médica? O que os problemas em debate
revelam é que essa contribuição pode estar aquém do que se imagina, numa relação
custo-benefício bastante desfavorável para quem paga a conta – o paciente. Um estudo da Universidade
Stanford, dos Estados Unidos, com o objetivo de aferir os fatores que levam uma pessoa a viver mais de 65 anos,
mostrou que a assistência médica é o que menos pesa: apenas 10% num conjunto em que o estilo
de vida participa com 53%, as condições ambientais com 20% e a herança genética com
17%. É muito pouco quando se compara esse percentual aos preços salgados e aos lucros gordos que
envolvem a assistência médica.
Cerca de 85% dos exames solicitados têm resultados negativos
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Na última década, os serviços
médico-hospitalares cresceram em torno de 12% ao ano nos Estados Unidos. Estima-se que eles responderão
por 15% do PIB americano este ano, algo em torno de 1,3 trilhão de dólares. (Isso dá mais
de duas vezes o PIB brasileiro.) Em média, cada cidadão americano gasta 4 800 dólares por
ano com consultas médicas, exames e internações. No Brasil, onde a assistência médica
compõe 4% do PIB (algo como 24 bilhões de dólares), a Fundação Getúlio
Vargas estima que na cidade de São Paulo, o maior centro médico do país, a indústria
da saúde cresce em torno de 15% ao ano.
Os números de Stanford apontam para problemas
que, até há pouco, se mantinham encobertos pela suposição de que a simples sofisticação
tecnológica e a variedade de drogas produzidas pela indústria farmacêutica bastavam para derrotar
tanto as velhas doenças quanto as novas moléstias. Sabe-se agora que é enorme o desperdício
na utilização da tecnologia – um dos principais fatores dos altos custos médicos –, bem como
o abuso na prescrição de remédios e indicação de cirurgias. “A escola americana
de medicina, modelo seguido no Brasil, é muito intervencionista”, afirma a doutora Regina Parizi, presidente
do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. “Nesse modelo apela-se demais à cirurgia e aos procedimentos
agressivos.” Compare: enquanto no Japão apenas um em cada 100 000 habitantes é submetido a algum
tipo de cirurgia coronária por ano, nos Estados Unidos essa proporção sobe para 61 por 100
000. Não há também justificativa lógica para o fato de 51% dos partos no Estado de
São Paulo acontecerem mediante operações cesarianas.
Na verdade, diz o psiquiatra paulistano e doutor em psicossomática Wilhelm Kenzler, cerca de 85% dos exames
solicitados pelos médicos – o número varia de seis a 28 na consulta inicial – apresentam resultados
negativos. E mais de 90% dos diagnósticos se resumem nas siglas NDN (nada digno de nota) ou DNV (distúrbio
neurovegetativo, ou seja, uma crise nervosa). Mesmo assim a maioria dos pacientes volta para casa com uma receita
de medicamento, cujo uso – dispensável na maioria dos casos, como se pode perceber – pode ser o ponto de
partida de “doenças iatrogênicas”, aquelas que são causadas por tratamentos médicos
inadequados.
Eis aqui outro paradoxo. Enquanto se queixam do
relacionamento frio e impessoal com a medicina, os pacientes cada vez mais transferem para os médicos e
seu arsenal químico e tecnológico a responsabilidade pela própria saúde e a de seus
familiares. Não raro, são eles próprios que acionam o circuito do desperdício e da
dependência, pressionando pela prescrição de exames e de drogas. Se isso não acontece,
costumam entrar em pânico ou duvidar do profissional, como afirma o pediatra americano Wells Shoemaker. Ao
atender em seu consultório, no interior da Califórnia, um menino acometido de resfriado comum, o
médico recomendou apenas repouso e boa alimentação. Para sua surpresa, a mãe da criança,
inconformada, exclamou que não voltaria para casa sem uma receita. “Meu filho precisa de antibióticos”,
disse a mulher. “É assim que ele cura seus resfriados.” O pediatra ainda tentou explicar que antibióticos
combatem bactérias e não vírus, os causadores de resfriados, além de serem substâncias
perigosas, com muitos efeitos adversos no organismo. Em vão. Aos berros, a mãe do menino encerrou
a consulta: “Vou procurar um doutor que saiba cuidar de crianças”.
Mas, afinal, o que está mesmo
acontecendo com a medicina? Por que tantos exageros e descontentamentos numa época em que o conhecimento
das ciências médicas, segundo o doutor em neurofisiologia Renato Sabbatini, da Faculdade de Ciências
Médicas da Unicamp, em Campinas, dobra a cada três anos e em que não existe limite para a tecnologia
que desbrava o corpo humano?
“Isso ocorre devido a três pontos críticos”,
diz Wilhelm. “À despersonalização, à tecnificação e à mercantilização
da medicina.” Na raiz desses males estaria o próprio conjunto de conceitos e hipóteses que fundamentam
a moderna prática médica – o modelo biomédico moldado há três séculos.
Para entendê-lo é necessário recuar no tempo para encontrar dois marcos na história
do conhecimento: o físico inglês Isaac Newton e o filósofo francês René Descartes.
No século XVII, Newton concebeu o universo como um imenso mecanismo de relógio, possível de
ser compreendido a partir do estudo de suas partes. Na mesma época, Descartes estabeleceu a visão
dualista do homem, separando mente e corpo como entidades independentes. Nos séculos seguintes, tais idéias
constituíram o cerne do que hoje é conhecido como o paradigma cartesiano-newtoniano, base de todos
os sistemas conceituais nos diversos ramos da ciência. Na medicina, a aplicação do paradigma
mecanicista deu ênfase ao estudo isolado de órgãos e tecidos, o que foi reforçado ainda
mais pelos grandes avanços da microbiologia no século XIX.
O modelo biomédico consiste basicamente em três premissas: o corpo é uma máquina, a
doença é conseqüência de uma avaria em alguma de suas peças e a tarefa do médico
é consertá-la. A partir daí é que se determinou a prática médica atual,
a organização da assistência à saúde e a formação dos recursos
humanos nessa área, caracterizando-se a ruptura com a tradição inspirada no grego Hipócrates
(século V a.C.) e seus valores humanísticos. “As raízes da medicina hipocrática se
assentavam na filosofia da natureza e seu sistema teórico partia de uma visão holística que
entendia o homem como um ser dotado de corpo e espírito”, afirma Dante Gallian, pesquisador do Centro de
História e Filosofia das Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo. O médico
clássico era um filósofo. Conhecia a alma humana e a cultura local, andava muito próximo de
seus pacientes e atuava como conselheiro em assuntos como o despertar da sexualidade nos adolescentes, os
A indústria farmacêutica quer faturar 400 bilhões de dólares em 2002
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problemas de relacionamento do casal e outras questões
da vida familiar. Diante das limitações terapêuticas, permanecia ao lado do enfermo e seus
familiares, ajudando-os no sofrimento e na preparação para a morte. A figura romântica desse
clínico geral foi sepultada pela explosão das especializações no século XX,
quando o reducionismo impôs-se de vez à prática médica ocidental. O médico, então,
tornou-se um técnico, um especialista com grande conhecimento específico e quase sempre sem noção
do todo.
Note: a implantação do modelo biomédico
não emergiu do nada, mas de uma convergência de fatores históricos e culturais que validaram,
na época, os axiomas básicos da medicina ocidental como a conhecemos. O trabalho do químico
francês Louis Pasteur, pioneiro no estudo dos microorganismos, é talvez o pilar mais importante desse
modelo. Pasteur demonstrou a correlação entre bactérias e doenças e atribuiu a micróbios
específicos a causação de doenças específicas. Opôs-se assim a Claude
Bernard, cuja teoria, muito difundida no século XIX, apresentava a doença como resultado de uma perda
de equilíbrio do organismo provocada por fatores externos e internos. Bernard afirmava que os micróbios
são inócuos e que o corpo do homem é hábitat natural de bactérias, úteis
à eliminação de toxinas. Em apenas 1 mililitro de saliva humana, por exemplo, existem 150
milhões de bactérias. Essa coexistência pacífica dos microorganismos com o nosso corpo
só seria rompida, segundo Bernard, quando este, agredido por fatores ambientais e hábitos não
saudáveis, se desregulasse e se transformasse em um “terreno” propício ao surgimento de doenças.
Em vez de ser a causa primária das doenças, as bactérias seriam manifestações
sintomáticas de um distúrbio fisiológico oculto. Os danos a tecidos e órgãos,
na tese de Bernard, decorreriam da reação excessiva do organismo provocada por descontrole dos mecanismos
de defesa.
Pasteur, que, além de pesquisador meticuloso era um polemista hábil, acabou infundindo sua teoria,
favorecido pela eclosão, na Europa, de epidemias que lhe permitiram demonstrar o conceito de causação
específica. Desde então, o combate aos microoganismos geradores de doenças passou a ser o
foco da medicina ocidental em sua pretensão de tornar-se uma ciência exata. No século XX, o
desenvolvimento de vacinas e medicamentos contra enfermidades infecciosas, especialmente os antibióticos,
os antidepressivos e a descoberta do hormônio cortisona e seu poder antiinflamatório, selaram o triunfo
do modelo biomédico no controle de males devastadores. Também a eficácia da medicina de emergência
em casos de acidentes, infecções agudas e outros imprevistos contribuiu para esse êxito. Os
novos recursos da medicina e da farmacologia passaram a ser vistos como os grandes responsáveis pela melhoria
das condições de saúde e o aumento da expectativa de vida nos últimos 100 anos. (Em
1900 um brasileiro vivia, em média, 37 anos; hoje vive 68, quase o dobro.)
O brilho de tanto sucesso ofuscou por várias décadas questões como o perigo dos efeitos colaterais
dos medicamentos, a influência dos fatores sociais, econômicos e culturais no aumento da expectativa
de vida e a contribuição poderosa dos processos psíquicos e dos hábitos para a saúde
do organismo. Mas, nos últimos tempos, pesquisas como a da Universidade Harvard, atestando a supremacia
do estilo de vida entre os fatores de saúde e longevidade, trouxeram para o centro do debate antigos argumentos.
Um deles, apresentado pelo inglês Thomas Mckown, em seu livro The Role of Medicine: Mirage or Nemesis (O
papel da medicina: ilusão ou castigo), ainda inédito no Brasil, é o que atribui o enorme declínio
da mortalidade, a partir do século XVIII, ao aumento da produção de alimentos, com reflexos
na nutrição das pessoas, à melhoria das condições de higiene e saneamento e
à redução da pobreza. Segundo Thomas, as principais doenças infecciosas já tinham
atingido o seu pico e
Metade dos médicos brasileiros atua
no eixo Rio-São Paulo
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estavam em declínio bem antes da chegada
dos antibióticos ou das campanhas de imunização, fato que demonstraria a responsabilidade
modesta que a intervenção médica teve naqueles casos. Quando a vacina contra sarampo foi adotada
nos Estados Unidos, em 1964, por exemplo, o índice de mortes provocadas pela doença já havia
declinado 95% desde 1915.
Seja como for, os medicamentos passaram a ser vistos
como a chave para a cura de todos os problemas de saúde. E, como conseqüência, a produção
de remédios tornou-se um dos negócios mais lucrativos do planeta, detalhe que veio a influenciar
profundamente o ensino e a prática da medicina. A aliança das ciências médicas com a
indústria farmacêutica, ainda hoje um dos muitos temas tabus entre os médicos, foi notada pela
primeira vez no início do século XX, quando a Associação Médica Americana promoveu
uma pesquisa sobre as escolas de medicina. O objetivo do estudo era proporcionar uma base científica à
formação do médico. Mas havia um objetivo paralelo: selecionar escolas que receberiam verbas
vultosas de fundações como a Rockefeller e a Carnegie, desde que atendessem a critérios preestabelecidos.
A pesquisa deu origem ao chamado Relatório Flexner, documento que influenciou a reforma do ensino médico
nos Estados Unidos.
“O interesse do big business não é curar, mas manter as doenças
sob controle de remédios”, diz Wilhelm. Segundo o psiquiatra, que também é professor de medicina
psicossomática na Faculdade de Medicina Santo Amaro, em São Paulo, a grande indústria farmacêutica
mobiliza bilhões de dólares para financiar escolas e centros de pesquisa médica, além
de cortejar médicos e pesquisadores com mordomias que incluem viagens a congressos e estágios no
exterior. “O pesquisador passa a ser praticamente um colaborador do laboratório farmacêutico e o médico,
um de seus propagandistas”, afirma Wilhelm. A finalidade desses estudos seria quase sempre validar novos produtos
prestes a entrar num mercado novo.
Há 20 anos, o mercado global de medicamentos
movimentava apenas 12 bilhões de dólares. Agora a indústria farmacêutica quer chegar
a 2002 faturando 400 bilhões de dólares. É como se dois terços de toda a riqueza produzida
no Brasil no ano passado fosse empregada apenas na compra de remédios alopáticos. Mas o que move
a parceria da indústria farmacêutica com a pesquisa e o ensino médico não é o
mero desejo de lucro, diz Serafim Branco Neto, secretário Executivo da Abifarma, a Associação
Brasileira da Indústria Farmacêutica. “Perde-se muito dinheiro em pesquisas que não chegam
a nada ou desaconselham o uso de algum novo produto.” Segundo Serafim, o valor médio investido na pesquisa
de uma única nova droga é de 400 milhões de dólares.
“Não há nada errado
no modelo biomédico. O paradigma da patologia celular continua válido e é suficiente para
explicar as doenças e buscar a sua cura”, diz Renato Sabbatini. “A boa medicina é científica,
apóia-se em evidências.” Para Renato, muitas das limitações da medicina convencional,
entre elas os efeitos adversos dos remédios, devem ser superadas nos próximos anos graças
aos progressos da biologia molecular. Medicamentos feitos sob medida, a partir do conhecimento do código
genético do paciente, serão mais precisos. E as intervenções no DNA poderão
tornar o organismo humano mais resistente às condições ambientais ou dotado de habilidades
próprias de outras espécies como, por exemplo, enxergar no escuro.
O problema da medicina, diz Renato,
está circunscrito à exploração econômica da atividade, que transformou o médico
num assalariado mal pago e afetou a qualidade do ensino da medicina com a proliferação desordenada
de cursos – outro grande filão na área da saúde. O
Brasil possui 104 faculdades de medicina. Apenas em Ribeirão Preto, cidade média do interior de São
Paulo, existem quatro. Entre as 81 faculdades submetidas, no ano passado, ao exame de avaliação do
MEC, o provão, mais de um terço recebeu conceito ruim ou péssimo.
Lançados em ritmo de linha de montagem no mercado urbano (há três anos metade dos
216 000 médicos atuantes no Brasil trabalhava em São Paulo e no Rio de Janeiro), muitos desses profissionais
acabam incorrendo em transgressões éticas que vão além da indiferença no trato
com o paciente. “O que esperar
de um médico que ganha 3 reais por consulta no Sistema Único de Saúde, o SUS, se ele pode
ganhar 400 solicitando uma tomografia ou 40 000 numa cirurgia paga pelo cliente?”, pergunta Renato. Uma expressiva
parcela dos médicos tornou-se, enfim, vítima de situações estressantes, nem sempre
levadas em conta quando eles cuidam da própria saúde e da de seus pacientes.
Chega a ser irônico que a expectativa de vida dos profissionais da área médica, mesmo em países
desenvolvidos, como os Estados Unidos, seja cerca de dez anos menor que a média das outras pessoas. Também
causa espanto que o alcoolismo, o abuso de drogas e o suicídio apresente elevados índices entre os
médicos. Um estudo da Universidade da Califórnia, realizado no ano passado entre 9 600 médicos
americanos, mostrou que 20% deles usaram drogas derivadas de ópio, prática facilitada pelo acesso
rotineiro à morfina e substâncias similares utilizadas em hospitais. O alcoolismo é um vício
tão espraiado entre médicos que foi criada uma versão especial dos grupos de auto-ajuda Alcoólicos
Anônimos só para atendê-los – o International Doctors in Alcoholics Anonymous, IDAA. O mais
grave em tudo isso é que, com raras exceções, os médicos dependentes de drogas continuam
na ativa, às vezes atendendo em UTIs e realizando cirurgias.
Como entram os pacientes nessa história? Para começo de conversa, é preciso frisar que muitos
dos males apontados na medicina ocidental têm relação causal com a postura passiva de indivíduos
como eu e você. De modo geral, os pacientes delegam aos médicos a responsabilidade integral pelo diagnóstico
da doença e pela decisão sobre que terapia adotar. Essa tradição paternalista agrada
à maioria dos pacientes, que não está nem um pouco interessada numa participação
que lhes exija algum tipo de esforço. Afinal, por que operar sofridas mudanças de comportamento e
de hábitos alimentares, por exemplo, se é tão mais fácil engolir uma pílula
mágica? Essa atitude, no entanto, começou a mudar. E, com isso, alguns pilares da rotina médica
ocidental passaram a se mover.
“A voz dos pacientes precisa ser ouvida”, diz Patrick Terry, líder de um grupo de pacientes de Sharon, Massachusetts,
nos Estados Unidos, acometidos de PXE, doença que resulta da acumulação de cálcio nos
tecidos e pode cegar suas vítimas. A voz dos usuários começa a ser ouvida em diferentes estágios
da cadeia médica. Grupos similares ao de Patrick, como o Genetic Interest Group, da Inglaterra, e outros
na Holanda, na Bélgica e nos Estados Unidos não se mobilizam apenas por mais humanismo na medicina.
Eles querem influenciar o desenvolvimento de drogas contra doenças incuráveis, inclusive propondo-se
a adquirir patentes de novos remédios com a intenção de barateá-los.
Iniciativas como essa já produzem resultados lá fora. E no Brasil também. Nos últimos
anos, por exemplo, centenas de escolas de medicina dos países desenvolvidos anunciaram ajustes em sua grade
de conteúdos, com a inclusão de disciplinas que abrangem relações humanas,
Estudo indica que 20% dos médicos americanos são dependentes do ópio
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dinâmica familiar, violência doméstica
e até fé e compaixão. “No Brasil também estamos discutindo a reformulação
do ensino médico”, diz Regina. “O objetivo é formar profissionais mais generalistas e capazes de
lidar com pessoas, seguindo os passos das principais faculdades de medicina do mundo.” Uma pesquisa patrocinada
pelo governo americano revelou que, para 85% dos pacientes, o valor de um médico se deve mais à sua
capacidade de ouvir e explicar do que ao peso do seu currículo.
É pouco provável que o modelo de medicina hegemônico no Ocidente venha a ser alterado em sua
base nos próximos anos. Mesmo com as limitações e distorções agora em debate,
a medicina convencional ainda é o recurso mais próximo e mais rápido para o enfrentamento
de situações extremas no campo da saúde. Mas é bom prestar atenção ao
que se passa na vizinhança do establishment médico. Neste momento, cerca de 200 hospitais americanos
já utilizam terapias não-alopáticas para complementar o tratamento de seus pacientes. Escolas
de medicina do primeiro time, como as das universidades Harvard, Stanford e Columbia, mantêm departamentos
voltados exclusivamente para a pesquisa de terapias alternativas e de práticas holísticas baseadas
no conhecimento oriental. Grupos de médicos brasileiros ligados a grandes hospitais, como o Hospital do
Servidor Municipal de São Paulo, e à Universidade de São Paulo, discutem uma abertura da medicina
convencional na direção de outros sistemas de cura. Como em qualquer crise, a da medicina moderna
pode ser um sinal de renovação.
Ai!
A dor ainda é um dos maiores desafios
à medicina e aos médicos, que não sabem lidar com ela
A
dor é o sintoma patológico que mais leva pessoas aos médicos. Só no Brasil 80% das
consultas são relacionadas a esse fenômeno biológico, o mais explícito dos sinais do
organismo. Recentemente, a dor foi considerada o quinto sinal vital. Apesar disso, a incapacidade dos médicos
de lidar com a dor de seus pacientes continua a ser um dos pontos críticos da medicina moderna. Como a dor
não pode ser medida objetivamente, a exemplo da pressão do sangue e dos níveis de colesterol,
é difícil para a maioria dos profissionais avaliar sua extensão e efeitos sobre o doente.
O tema tem sido enfocado em congressos internacionais e, neste mês, será debatido em São Paulo
durante o Simpósio Brasileiro e Internacional sobre Dor, organizado pelo especialista Cláudio Fernandes
Correa.
Há alguns avanços nesse campo. O dolorímetro, aparelho que capta ondas infravermelhas produzidas
pelo calor do corpo, já permite ao médico obter uma medida aproximada da intensidade da dor física.
Outra técnica menos sofisticada, mas eficaz principalmente em crianças, é a escala de dor
– uma faixa contendo cores, números ou figuras com expressões que vão do sorriso à
careta. O paciente, então, é solicitado a dizer qual ícone ou número expressa com mais
exatidão a sua dor. Mesmo diante de um número concreto, o médico deve ponderar que a percepção
da dor varia de paciente para paciente. Problemas psicológicos podem aumentar em até 20% a sensação
dolorosa de uma pessoa. Por outro lado, dores crônicas costumam gerar depressão e problemas de relacionamento.
Em clínicas especializadas, como a do Hospital Nove de Julho, em São Paulo, a cura da dor é
tentada com a utilização de eletrodos para bloquear as vias nervosas que transportam a sensação
desagradável ao cérebro. Os terapeutas holísticos acham isso um erro. “A dor é a luz
vermelha que nos adverte. Suprimi-la com remédios ou outros recursos é como tapar a boca de quem
está se afogando”, diz o psiquiatra e terapeuta holístico Wilhelm Kenzler. |
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