Vivendo sem eletricidade
Renato Sabbatini
Somos
uma civilização viciada em eletricidade. Estamos tão
acostumados a acionar interruptores e ter as benesses dos elétrons
fluindo em uma rede invisível que se estende por todos os prédios
e casas, que nem pensamos mais no que elas significam. Isto é, até
o governo anunciar que vai haver racionamento de energia, e que os famosos
"apagões" começarão a atormentar nossas vidas até
agora tão confortáveis…
Depois de desfrutar
de décadas de energia elétrica abundante e barata, o Brasil
acordou bruscamente para uma realidade que só nos atingia ocasionalmente,
durante alguma tempestade, e, mesmo assim, por poucas horas. Aprendemos
(novamente), no entanto, que a falta de planejamento a longo prazo no setor
energético é fatal, pois uma usina hidroelétrica demora
muito tempo para ser construída e custa muito, muito dinheiro. Qualquer
idiota consegue enxergar que a equação composta pelo crescimento
da economia brasileira, com o fim da inflação e a queda dos
juros, e pela privatização das empresas de eletricidade só
poderia levar a esse resultado. Não precisa ir muito longe, nem
muito tempo atrás: a Califórnia, o estado mais rico do país
mais rico do mundo, está exatamente nesse momento convivendo com
uma situação dessas, como se fosse uma "banana republic"
latino-americana qualquer. E pelos mesmos motivos citados acima.
O sistema de geração
e distribuição elétrica é o verdadeiro apanágio
da civilização moderna, amparada na alta tecnologia. No entanto,
é muito recente, historicamente (foi inventado por Thomas Alva Edison.
A primeira cidade do mundo a ter uma rede elétrica foi Nova Iorque,
em 1882) e ainda está ausente para uma parcela não desprezível
da população mundial, seja por isolamento geográfico,
pobreza ou opção consciente. No Brasil, uma grande parte
das zonas rurais ainda não tem acesso à grade de energia
elétrica. Nos estados da Amazônia, são comuníssimas
as cidades que têm energia quatro horas sim, quatro horas não.
Nos Estados Unidos, a comunidade dos menonitas (Amish), vive totalmente
sem eletricidade. É uma seita religiosa cristã radical, que
não aceita telefones, rádios, TVs, automóveis ou qualquer
outra invenção moderna que use fios. Em áreas frequentemente
sujeitas a tufões, furacões, tornados, tempestades tropicais,
tempestades de gelo ou neve, a falha de energia elétrica é
uma coisa da vida. A tal ponto que nos EUA existem lojas dedicadas a vender
aparelhos que funcionam sem eletricidade ou com fontes de energia alternativa,
tais como refrigeradores a gás, sistemas de som movidos a manivela,
liquidificadores operados manualmente (fabricados no Peru!), sistemas de
aquecimento que usam painéis solares, lampiões de querosene,
bombas manuais, baterias de longa duração, geradores elétricos
movidos a gasolina ou a rodas d'água, e outras curiosidades (veja
uma delas em http://www.lehmans.com).
Um exemplo de como as
pessoas conseguem viver sem eletricidade durante "apagões" de longa
duração ocorreu em 1998, em quatro províncias do Canadá
e quatro estados do norte dos EUA. Cerca de 5 milhões de pessoas
ficaram sem eletricidade por cinco semanas, devido a uma tempestade de
gelo, que derrubou mais de 1.000 torres de transmissão de grande
porte e cerca de 35.000 postes de madeira e 7.500 transformadores. Foi
o acúmulo de gelo nos fios que causou esse desastre (é por
isso que a maioria das cidades setentrionais têm fios de eletricidade
subterrâneos: quando brasileiros as visitam, a primeira coisa que
notam é a ausência dos postes e fios que se entrecruzam no
ar de nossa paisagem urbana). No Canada, 20% da força de trabalho
teve que parar, muitas vezes por uma semana ou mais, e 100 mil pessoas
tiveram que sair de casa e ir para abrigos. Detalhe: isso ocorreu no auge
do inverno daquela região, que é terrível. Muitas
pessoas morreram de frio em casa, ou indiretamente, de doenças causadas
pela exposição a ele.
O impacto da falta de
eletricidade é muito maior e alcança muito mais longe do
que se imagina. Por exemplo, na crise acima, a cidade de Montreál,
uma das maiores do Canada, ficou sem água, devido à falha
do sistema de bombeamento e tratamento. Mesmo na área rural o efeito
é sentido: no Canadá, cerca de 5.500 fazendas que dependiam
de ordenhadeiras eletromecânicas tiveram uma brutal queda de produção,
pois a única alternativa era ordenhar à mão…Só
não morreu mais gente porque os americanos do norte e os canadenses
temem o inverno como a própria morte, e são relativamente
previdentes. A maioria das casas sobreviveu ao frio e à falta de
eletricidade graças a milhares de pequenos geradores individuais
à gasolina (japoneses…).
É o que todos
nós deveríamos estar preocupados em comprar, agora. Nos dá
uma sensação de irrealidade, de coisa absurda, imaginar que
o racionamento virá para valer. Vamos ter que aprender truques que
apenas nossas bisavós sabiam, para manter a comida fresca, cozinhar,
lavar, limpar e iluminar a casa, e nos entretermos à noite. Com
certeza vai aumentar a natalidade! E pode esquecer a Internet.