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Desativando o Caos Urbano

 

Renato Sabbatini

As chuvas de verão de 1999 são o retrato acabado do caos urbano que assola São Paulo: uma cidade incapaz de sair do ciclo de inundação, desespero, prejuízo, morte. O prefeito põe a culpa em todo mundo: no tempo, na população, nele mesmo. O  pior é que ele tem razão: a cidade gigantesca, associada à fúria da Natureza, pune os erros de seus habitantes e governantes. Parece que acabou aquele típico orgulho de brasileiro quando vai ao exterior: "não temos terremoto, vulcão, nenhum desastre natural!" Mas, em compensação, temos o desastre "natural" dos políticos…

Examinando o fenômeno pelo ângulo da ciência, não nos surpreendemos com o que está acontecendo. A área construída contígua (mancha urbana) de São Paulo impermeabiliza os solos com asfalto e concreto, invade as áreas de várzea ao longo dos seus rios (inundadas naturalmente há séculos, devido às suas calhas rasas e planuras ribeirinhas), atravanca com lixo as saídas naturais e artificiais para o excesso de água. No entanto, não se investe suficientemente na tecnologia necessária para compensar esses efeitos da urbanização, e que são conhecidas há séculos, tais como o aumento dos sistemas de galerias pluviais, o trabalhos de desobstrução permanente dos mesmos, a construção de piscinas subterrâneas para absorção de excessos de carga hídrica em pontos críticos, o aprofundamento das calhas dos riachos, córregos e rios, por meio do desassoreamento permanente, etc. Outra providência seria a obrigatoriedade legal de se fazer a terraplanagem de loteamentos habitacionais seguindo curvas de drenagem natural da chuva, de baixa inclinação (processo conhecido desde o tempo dos antigos romanos…).

Evidentemente, São Paulo está pagando o preço de décadas de incúria e corrupção (onde estão os bilhões de dólares que o governador Fleury teria recebido da Alemanha para despoluir o Tietê e o Pinheiros?).

Acho também que arquitetos e construtores não estão usando sua criatividade. Nossas cidades utilizam técnicas de edificação que pouco mudaram nos últimos 2.000 anos.  Uma maquete da Roma Imperial, que vi recentemente em um museu italiano, é surpreendemente parecida com uma vista aérea de qualquer cidade moderna, tirando os arranha-céus. A pavimentação das ruas e as edificações cobrem 98% da zona urbana em São Paulo, apenas 2% contém terreno nú capaz de absorver água diretamente. A área somada de todos os telhados representa 60% ou mais da área impermeabilizada. É um deserto de rocha artificial, nú e estéril.

Pois bem, onde estaria a solução? Uma saída inteligente seria transformar "cada casa em uma árvore, e a cidade, em uma floresta", segundo a visão genial do arquiteto americano William McDonough. Ele construiu prédios de escritório e residências na Califórnia, cujo telhado é coberto com 30 cm de solo, onde plantou grama e flores. Esse telhado funciona também como um isolante térmico e acústico muito eficiente. O excesso de água captado por esse sistema durante chuvas intensas é jogado em piscinas subterrâneas ("storm sewers"), que tem um sistema de escoamento capilar por todo o terreno, utilizando simples tubos de plástico com furinhos em toda sua extensão. Dessa forma, imitam os sistemas naturais formados pelas raízes das plantas. Ou então, essa água é utilizada para alimentar os sistemas de aquecimento solar, instalados nos telhados inclinados. Imaginem se todos os prédios de uma cidade fossem construídos assim, entremeados de pequenos bosques de árvores frutíferas e gramados. As inundações seriam muitissimo mais raras, e a qualidade de vida, incomparavelmente maior.

As cidades ao redor de Washington, o distrito federal americano, são assim. Recentemente visitei um amigo campineiro que mora em Reston, no estado de Virginia, a poucos quilômetros de distância. Fiquei estupefato quando ele me disse que a cidade tem mais de 700 mil habitantes. Não parece: quase não se vê as casas, dispersas no meio de imensos bosques. Não existem prédios altos, e tudo é interligado por uma imensa e bem construída malha rodoviária. Comparem com Campinas, do mesmo tamanho.

No Brasil, os especuladores continuam a construir milhares de prédios e casas usando uma tecnologia que degrada o ambiente e a qualidade de vida. As prefeituras continuam a utilizar normas de edificação que já eram obsoletas na época de Pompéia. Todos colocam o ambiente urbano em alto risco, onde os desastres se repetem, como tem acontecido nos últimos verões em São Paulo, Campinas, e todas as grandes conglomerações urbanas desse país.

Comentando na tevê os últimos acontecimentos em São Paulo, o jornalista Bóris Casoy expressou-se com rara felicidade: "São Paulo não combate mais as cheias, apenas procura adaptar-se a elas."  Até quando?


Correio PopularPublicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 12/3/99 .

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