Então porque dar o nome de "Na Noosfera" à minha habitual coluna de ciência, que publico ininterruptamente há oito anos no Correio Popular? A idéia de dar um nome identificativo à coluna veio de Mario Evangelista, nosso impávido editor chefe. Como eu gosto de escrever sobre uma grande variedade de assuntos, abrangendo quase todo o conhecimento humano, me lembrei dessa coluna. Pois noosfera, segundo a definição de uma enciclopédia chamada Principia Cybernetica, quer dizer: “a totalidade da informação e do conhecimento humano coletivamente disponível para a humanidade, e os processos que operam nesse espaço". É um termo relativamente novo, criado a partir de outros conceitos similares, como atmosfera (o espaço de gases que envolve um corpo celeste), biosfera (o espaço ocupado por seres vivos), etc.
Para que exista uma noosfera, não basta o conhecimento simplesmente existir e poder ser difundido, mas sim como ele é disponibilizado e difundido. Afinal, isso é o que caracteriza a espécie humana: somos o único animal capaz de realizar a transmissão do conhecimento, essencialmente através da fala. A invenção da escrita modificou enormemente as sociedades humanas e deu origem às civilizações, mas foi somente a partir da invenção da imprensa por Gutemberg, em 1460, que se tornou possível a replicação ampla e barata do conhecimento. Uma noosfera primitiva, mas já eficiente, formou-se ao longo dos últimos séculos, e a biblioteca é a sua operacionalização (mesmo que incompleta, fragmentada e distribuida).
Na realidade, noosfera tinha um sentido mais espiritual (algo como a rede cósmica das consciências individuais), e foi inventado pelo padre católico, cientista e filósofo Pierre Teilhard de Chardin, na década dos 40s. Era um conceito importante para sua obra filosófica, que postulava a ascenção e o progresso espiritual do homem em direção ao famoso "ponto ômega", ou seja, a semelhança com Deus.
O conceito de noosfera, como eu o imagino, é muito mais amplo e revolucionário, no entanto. Ela seria um repositório imenso, integral e interligado, de todo o conhecimento humano, mas que pudesse estar disponivel instantaneamente e em sua totalidade para cada um de nós! Já imaginaram? Seria, parafraseando o psicanalista suiço Alfred Jung, o "consciente coletivo", real, palpável e utilizável. Seria tão ou mais revolucionário que as três etapas essenciais da evolução cultural humana, a fala, a escrita e a imprensa. Essas etapas se caracterizaram por um sucessivo alargamento da esfera de influência imediata do conhecimento que um ser humano individual consegue transmitir. Com minha voz, alcanço somente os meus vizinhos espacialmente mais próximos, e não existe um repositório do conhecimento, a não ser através da tradição oral. Com a escrita, alcanço bem mais longe, no espaço e no tempo, mas estou limitado pelo tempo que demora o papel para chegar lá, e pela dificuldade de localizar e ler alguma coisa na noosfera formada por todos os papéis impressos pela humanidade. O telégrafo e o telefone foram as primeiras invenções revolucionárias, ambas surgidas no século passado, que começaram a derrubar as barreiras do espaço e do tempo para a comunicação com a noosfera, mas tinham muitas limitações quanto à permanência e à integralidade desse acesso (por exemplo, o telefone amplia o alcance geográfico da voz, mas é apenas o meio, não a mensagem. Não existe uma "fonoteca" de tudo o que foi falado pelo telefone até hoje).
Somente há cerca de 15 anos que a uma "noosfera eletrônica" começou a se tornar possível. A essa altura vocês já adivinharam o que é: a Internet! A Internet é o arquétipo e a implementação tecnológica final da noosfera, com seus quase 50 milhões de computadores interligados, quase 150 milhões de usuários (dizem que serão meio bilhão até o final do século), 300 milhões de documentos, imagens, filmes e sons, disponíveis a partir de qualquer ponto do mundo, em questão de minutos. Nunca, antes dela, tinha sido possível, através da demanda por parte do consumidor de informação, ter acesso a esse verdadeiro “envelope” de conhecimento, que agora se difunde por todo o mundo, carregado por elétrons. A rádio e a TV não se classificam, pois eu não tenho controle sobre sua programação (elas são, tecnicamente, emissões unidirecionais e nào armazenadas em toda sua extensão, enquanto que a Internet é interativa, navegável e quase que integralmente armazenada em algum lugar, como se fosse uma biblioteca eletrônica.)
Bom, a coisa pode parecer muito estratosférica, mas é uma realidade palpável, instigante, demolidora de paradigmas. E ela está apenas em sua infância. Demorou mais de 300 anos para que a "noosfera impressa" se desenvolvesse. Em apenas alguns anos, uma fração considerável, embora ainda pequena, do conhecimento humano começou a ser disponibilizada através da Internet. Podemos somente imaginar qual será o seu impacto e extensão quando detiver 100% do conhecimento! Só para pegar um exemplo: quantos livros, dos centenas de milhões de títulos que foram publicados nos últimos 500 anos, estão disponíveis na Internet? Quantas revistas, quantos jornais, fitas, discos, filmes, fotos, desenhos e pinturas? Quase nada, comparativamente. A maior biblioteca virtual da Internet, chamada, muito apropriadamente, "Projeto Gutemberg", disponibiliza eletronicamente livros que já perderam o copyright, como os grandes classicos (todas as obras de Shakespeare, por exemplo). Tem pouco mais de 2 mil títulos, uma gota no oceano das bibliotecas "reais".
A Internet tem inúmeros aspectos revolucionários, mas o principal deles é o fato de que posso localizar quase que instantâneamente qualquer uma das palavras individuais existentes no meio dessa imensa massa de informação publicada. Para os leitores que não conhecem a Internet ainda, explico: existem certos serviços, chamados "mecanismos de busca", que armazenam automaticamente toda a informação existente na Internet (literalmente) em índices formados por palavras e outros ítens de informação. Um deles, o Altavista (www.altavista.com), indexa mais de 150 milhões de documentos. Digitando qualquer número de palavras, o sistema localiza em segundos todos os documentos existentes em seu repositório que à contém, e dá acesso imediato aos mesmos. É espantoso, nunca tivemos nada parecido em toda nossa história.
A noosfera continuará a se expandir e a se consolidar nos próximos anos. O conhecimento humano disponibilizado através da Internet, em sua infinita variedade, da Bíblia aos sites mais pornográficos, está duplicando de tamanho a cada três meses… A progressão é exponencial, dentro de alguns anos estará duplicando de tamanho a cada semana, até atingir um platô. Nesse momento teremos a noosfera. Para percorrê-la e explorá-la teremos que ter o auxílio de inteligências computacionais, nenhum ser humano terá a capacidade individual de navegar nesse vasto oceano de informação sem se perder, como um Fernão de Magalhães da era moderna. Imagino o que Chardin estaria pensando sobre todas essas possibilidades, se estivesse vivo!
Mas isso eu deixo para contar no próximo artigo…
Publicado
em: Jornal Correio Popular, Campinas, 30/4/99.
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