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O computador e a bomba

Renato M.E. Sabbatini

Parece estranho que o desenvolvimento de um dispositivo tão complexo como a primeira bomba atômica, inventada por um grupo de cientistas no deserto de Novo Mexico, exatamente 50 anos atrás, tenha sido possível sem a ajuda de um computador eletrônico. Mas é verdade, e a forma como foi possível realizar em tempo recorde a imensa quantidade de cálculos necessários para o projeto da bomba, é uma das histórias mais estranhas do mundo da computação.

Dos dois tipos de bombas idealizados pelos físicos nucleares ligados ao Projeto Manhattan, "Fat Boy" (Garoto Gordo) era o que representava o maior desafio para os cálculos teóricos. Era uma bomba constituída por um núcleo de plutônio, do tamanho de uma bola de tênis, circundado por camadas de explosivos convencionais. A um comando de disparo, a camada externa explodiria simultaneamente, e comprimiria o núcleo de plutônio, gerando pressões e temperaturas equivalentes às existentes no centro da Terra. Isso, imaginavam os físicos, levaria o plutônio à massa crítica necessária para a fissão nuclear. O problema era extraordinariamente complexo, pois diferenças de menos de alguns microssegundos na detonação dos explosivos levaria a uma falha no processo de criticalidade. A Matemática ainda não tinha desenvolvido a maioria dos métodos a serem utilizados para o cálculo da propagação das ondas de choque no núcleo liquefeito de plutônio, e muito menos existiam computadores capazes de realizar essa tarefa em tempo hábil.

A solução destes problemas foi entregue para a Theoretical Section, uma divisão do Projeto, no laboratório secreto de Los Alamos, e que era liderada pelo genial físico alemão Hans Bethe, refugiado dos nazistas, e que posteriormente receberia o prêmio Nobel por suas contribuições à física teórica das estrelas. Um dos integrantes da Seção era o jovem e brilhante físico teórico Richard Feynman, que além de ser um excepcional matemático, tinha jeito para mexer com máquinas de todo tipo. Como podemos ler em sua recente biografia, "Genius: The Life and Science of Richard Feynman", por James Gleick, ele deu uma contribuição fundamental para o projeto teórico da bomba de plutônio.

No início do projeto, tudo o que a Seção Teórica dispunha, em matéria de computação, eram réguas de cálculo e calculadoras eletromecânicas da marca Merchant, uns trambolhos enormes, barulhentos, lentos e pouco confiáveis (as máquinas eram capazes de realizar as quatro operações com 12 dígitos de precisão, mas algumas vezes "entravam em parafuso" no meio de uma divisão). Além disso não eram programáveis e quebravam com muita facilidade. Feynman desenvolveu técnicas para consertar essas máquinas, e fabricar peças de reposição, e se divertia a beça com isso, até que Bethe ordenou que parasse de desperdiçar seu precioso tempo nessa atividade. Entretanto, as calculadoras se revelaram insuficientes para o trabalho, por isso o Projeto Manhattan comprou equipamentos de tabulação de cartões perfurados, fabricados pela IBM, e que eram usados em bancos e empresas. Para apressar os cálculos, Feynman montou um gigantesco "computador" paralelo, um híbrido de gente e máquinas, que se revelou altamente eficiente, e que serviu de base, posteriormente, para os primeiros estudos sobre algoritmos de computação paralela, usados até hoje.

A coisa funcionava assim: Feynman contratou dezenas de mulheres (geralmente esposas dos cientistas e engenheiros do Projeto Manhattan, pagas com 3/8 do salário de seus maridos) e as colocou em mesas, cada uma com sua calculadora Merchant. Cada bancada de calculadoras era responsável por uma parte do cálculo de um sistema complexo de equações: por exemplo, uma mulher calculava uma raiz quadrada, outra realizava a expansão de uma série, etc. Os resultados de cada bancada eram perfurados em cartões, que eram transportados de bancada para bancada por mensageiras, de acordo com uma programação sequencial, idealizada por Feynman para cada tarefa de cálculo. Os tabuladores, multiplicadores, sumarizadores e ordenadores da IBM entravam em várias partes do processo, utilizando os cartões perfurados gerados nas bancadas. Era um sistema fabuloso, obra de um verdadeiro gênio, e que funcionou perfeitamente.

O primeiro computador eletrônico de verdade, o ENIAC, que poderia ser utilizado para substituir esse complexo híbrido de gente e máquinas, estava sendo desenvolvido pelo Exército e pela Universidade de Pennsylvania, mas infelizmente só ficou pronto em 1947. Foi usado para os cálculos da primeira bomba de hidrogênio (bomba de fusão nuclear), que eram muito mais complexos do que os da bomba atômica. Um dia eu conto essa história, também.
 

Para Saber Mais


Sabbatini, R.M.E.: O fim de uma era. Correio Popular, Caderno de Informática, 27/06/1995.


Publicado em: Jornal Correio Popular, Caderno de Informática, 08/08/95, Campinas,
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