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O computador-juiz

Renato M.E. Sabbatini

Será que algum dia os computadores substituirão inteiramente profissionais em áreas como a Medicina, o Direito e a Engenharia ?

Este é um tema muito comum em contos e livros de ficção científica, pois é um velho temor da Humanidade, que aparece inclusive em lendas medievais, como a do robô Golem, supostamente criado a partir do barro pelo rabino-chefe de Praga.

A julgar pelo progresso que a Ciência vem alcançando nas últimas décadas, pode ser que essa substituição venha a ocorrer, até mesmo para profissões que exigem um altíssimo nível intelectual. Pelo menos, essa é a incendiária proposta de um dos gênios superdotados da computação, o norte-americano Douglas B. Lenat. Ele fez uma previsão, em um artigo na revista "Computer", de que programas de computador eventualmente substituirão os tribunais de justiça para julgar, com muito mais isenção e conhecimento de caso do que os imperfeitos juízes atuais.

O programa de computador que poderia realizar essa função, segundo Lenat, é de sua invenção, e se denomina Cyc (o nome deriva da palavra encyclopaedia). O seu desenvolvimento está sendo financiado por um consórcio de 56 empresas de alta tecnologia nos EUA, chamado MCC, há mais de dez anos. Seu objetivo não é modesto: saber tudo sobre tudo. Depois de investir 500 homens-ano na "alimentação" do Cyc, ele já armazena cerca de 1,5 milhão de fatos sobre o mundo. O "senso comum" é representado através de milhares de pequenos fatos que nós, seres humanos, sabemos, sem o saber. Por exemplo, qualquer criança pequena sabe que ao soltar um brinquedo, ele cai em direção ao chão (sem nunca ter ouvido falar de Sir Isaac Newton ou a lei de gravitação). Se ele subisse, seria um contra-senso. É justamente a falta de conhecimento de pequenos fatos sobre o mundo que nos cerca, como este, que torna a maioria dos programas de computador atuais bastante estúpidos, mesmo quando comparados com o mais estúpido dos seres humanos.

Pois bem, entra Lenat e desenvolve um sistema, baseado em uma rede semântica, que permite armazenar e interconectar entre si todos esses fatos, gerando uma inteligência no computador. Por exemplo, se o Cyc receber uma frase do tipo "Já estava claro, e ele soprou a vela", ele entenderá que: 1) a vela referida é algo usado para iluminar; 2) ela tem uma chama, que pode ser apagada por um sopro; 3) sopro é um ato voluntário que pode ser realizado apenas por um ser humano; 4) que não é necessária a vela quando está claro (a não ser quando num velório ou outras situações excepcionais, que o Cyc também conhece). A todos esses fatos, denominamos de contexto semântico, e é por isso que 99 % das pessoas são capazes de entender a frase acima. O objetivo de Lenat é que o Cyc também entenda, exatamente da mesma forma.

Espera-se que até 1995 o programa esteja "sabendo" cerca de 10 milhões de fatos, quando então atingirá o ponto considerado próximo da inteligência humana mediana. A partir daí, o Cyc será capaz de aprender sozinho, "lendo" revistas, livros e jornais a uma velocidade fantástica. Daqui a algumas dezenas de anos, Cyc terá armazenado centenas de milhões de fatos e será mais onisciente que todos os mortais juntos...

Lenat argumenta que se Cyc aprender todo o corpo de leis de um país, mais a jurisprudência (casos jurídicos anteriores) e, finalmente, alguns conceitos de moral, decência, dignidade, humanidade e bom senso, nada impede de que ele seja capaz de exercer a função de juiz muito melhor do que os humanos. Isto é irrefutável do ponto de vista lógico, ou seja, poderíamos acabar com os tribunais, os juízes e os jurados, futuramente. Apenas os advogados manteriam sua função, ou seja, apresentar ou refutar evidências, e argumentar a favor ou contra o réu (felizmente para eles). A justiça seria quase divina, de tão perfeita.

Neste ponto, começou uma briga formidável. Os opositores de Lenat surgiram rapidamente. A proposta tinha tons nitidamente fascistas, argumentavam alguns (pois lembrava a sociedade horrendamente totalitária do Big Brother, anunciada no livro "1984", de George Orwell). A imperfeição e a falibilidade são essencialmente humanas e não podem ser removidas do processo, criticavam outros.

Os argumentos contrários de natureza mais científica discutiam o fato de que a emoção faz parte de qualquer aprendizado, portanto é impossível que um programa de computador se torne, algum dia, verdadeiramente sapiente. E o Cyc é totalmente destituído de emoções verdadeiras, pois ele é uma simulação da mente, e não uma mente. É como se Lenat achasse que o filme de um peixe é um peixe. Por exemplo, a atual versão do Cyc (certamente incompleta e primitiva, se defende Lenat) sabe quem é Cyc, e o que ele é capaz de fazer, mas ignora que ele mesmo seja o Cyc. Ou seja, o programa não tem nada parecido com a consciência humana, principalmente a auto-consciência, que é uma parte tão importante de nossas personalidades.

É quase certo que o Cyc seja apenas um primitivíssimo precursor de algo muito mais poderoso que vem por aí. Neste caso, certamente seremos obrigados a achar um lugar ativo para ele na sociedade humana...


Publicado em: Jornal Correio Popular, 26/3/92, Campinas,
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