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Acesso à informação

 

Renato Sabbatini

Apesar do grande destaque que se dá à influência das mídias eletrônicas, como a TV e a Internet, na vida das pessoas, tem chamado pouco a atenção dos comentaristas especializados as dramáticas mudanças que estão acontecendo em relação a algumas das formas de relacionamento social.

Refiro-me especificamente à relação médico-paciente e à relação aluno-professor. Poderíamos também adicionar aqui a relação cliente-advogado. Todas elas, extremamente freqüentes em nossa sociedade, e que formam uma base importantíssima da função social, estão começando a ser abaladas pela universalidade do acesso à informação. Sim, porque se pensarmos bem, esses relacionamentos se baseiam no maior conhecimento, ou especialização do conhecimento, de uma parte em relação à outra. Além desse fato, eles contém diversas nuances psicológicas que são necessárias para que o relacionamento cumpra o seu efeito desejado: em medicina, muitas vezes até o sucesso da terapia, e a obediência do paciente aos medicamentos e mudanças de vida prescritas pelo médico, são determinadas por essas nuances. O mesmo acontece no aprendizado, na disciplina em classe, etc., com a relação aluno-professor.

Em medicina existe até mesmo um conceito relativamente novo, que tem sido muito estudado: a "compliance", um termo em inglês que significa "aderência" ou obediência ao tratamento. Os cientistas e médicos estão percebendo que uma parte considerável do sucesso da terapia médica não depende das técnicas usadas e da eficácia dos medicamentos, mas sim da "compliance". Dando um exemplo: o paciente está com diabetes e hipertensão, duas doenças que costumam andar juntas, principalmente em pacientes mais idosos, e que fazem um estrago considerável se não forem cuidadosamente tratadas. O médico prescreve suspensão do açucar e do sal, exercício moderado, controle periódico do açucar no sangue e da pressão arterial, e dois ou três medicamentos, que precisam ser tomados rigorosamente de acordo com as dosagens e os intervalos recomendados.  Muitas vezes recomenda também grandes mudanças no estilo de vida, para controlar o estresse, o fumo, o álcool e outras coisas que são praticadas há décadas .

A aderência a todas essas mudanças pode significar a diferença entre a vida e a morte para o paciente. Ou, pelo menos, representar uma vida mais saudável, satisfatória e livre de sintomas. No entanto, é difícil, muito difícil. O que parece ser racional, e desejável, é seguido pela maioria dos pacientes apenas no início do tratamento. Depois de alguns meses, cerca de 50 % já desistiu de parte das medidas necessárias. Depois de um ou dois anos, o paciente persiste em apenas uma ou duas delas, as vezes nenhuma. O resultado não é difícil de imaginar…

A autoridade do médico e do professor vem sendo corroída lentamente em nossa sociedade, devido a uma série de fatores. E a autoridade, o domínio benigno pela superioridade do conhecimento, é fundamental para o "compliance". Até o ponto, em que um novo movimento da medicina ocidental passou a valorizar o "shamanismo", ou seja, a ascendência mística do pajé sobre os membros da comunidade, para que eles acreditem nas formas de tratamento e na sua eficácia. Se eles acreditam e seguem, passa a existir uma grande probabilidade que eles funcionem. Talvez isso explique o sucesso das chamadas medicinas alternativas: a fé do paciente no tratamento e a obediência à autoridade.

Seguramente a TV e a Internet tem uma parcela de "culpa" nessa história. Já tenho ouvidos várias histórias de médicos que relatam que os pacientes cada vez mais vêm ao consultório armados de uma pilha de impressos tirados da Internet, com informação exaustiva sobre suas doenças, muitas vezes em um nível mais alto e completo do que o médico. A dúvida em relação ao diagnóstico e ao tratamento é cada vez mais generalizada, o que envenena completamente a relação médico-paciente. Muitos pacientes (chamados de "peripatéticos" pela medicina) vagam de consultório em consultório, tentando tirar várias opininões e tirar uma "média" das opiniões.

O mesmo vem acontecendo nas salas de aula. O professor, na maioria das vezes mal pago e trabalhando em excesso, não tem tempo de se atualizar, não "navega" na Internet e nem lê nada sobre sua própria área de ensino. Resultado: a meninada, cada vez mais esperta, consegue informações na TV e na Internet, e perde o respeito pelo professor. Esta relação social, delicada e importante, também degenera. Tenho ouvido muitos relatos de alunos ridicularizando o professor em classe, pela sua ignorância em relação aos computadores e à Internet.

Para onde vai tudo isso ? Evidentemente, informação é sempre melhor do que a falta dela, e o acesso crescente das pessoas leigas a um enorme acervo de informações de todo tipo, facilmente disponível, é uma tendência sem volta. O professor, o médico e o advogado é que terão que mudar. Eles precisarão achar novamente seu lugar e retomar sua autoridade nesse novo mundo, sabendo coexistir com a diversidade e o excesso de informação. Seu papel social e psicológico terá que ser reformulado drasticamente. Inclusive para o próprio bem dos pacientes e dos alunos, ou seja, para a eficácia do processo médico e de aprendizagem.
 


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 28/8/98.

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