Indice de Artigos

Pirataria de software e a universidade

 

Renato Sabbatini

Dar um tiro no próprio pé. Talvez seja essa a imagem mais apropriada para a campanha antipirataria de software que a Microsoft está ajudando a promover através da Associação Brasileira de Empresas de Software (www.abes.org.br) pelo rádio, TV e imprensa, pelo menos do ponto de vista do seu relacionamento com as universidades.

No entanto, ela está coberta de razão. Afinal, utilizar um software pirata é igual, perante a lei, a realizar um furto num supermercado. Embora muita gente distinta jamais faria uma coisa dessas, não hesitam em instalar uma cópia ilegal de software em seus computadores domésticos, ou pior, nos de suas empresas. Trata-se de apropriação indébita, pura e simplesmente, segundo a lei sancionada pelo presidente em março. No Brasil, a porcentagem de programas pirateados é uma das mais altas do mundo, em torno dos 60%. É vergonhoso. Segundo as estimativas, isso causa uma perda de mais de 800 milhões de dólares por ano aos fabricantes de software.

Pois bem, a campanha com tonalidades ligeiramente terroristas da ABES aparentemente surgiu os efeitos desejados: ocorreu nos últimos meses um aumento de 50% na venda de softwares em todo o país, e um decréscimo de 7 pontos percentuais na pirataria. Mas, por outro lado, ela está causando um efeito indesejado, do ponto de vista dessas empresas: uma migração maciça para as alternativas tecnológicas gratuitas. Se elas não existissem, tudo bem. Mas acontece que existe pelo menos uma, e muito boa: o sistema operacional Linux, uma versão do sistema Unix, até então usado e apreciado apenas por engenheiros, analistas de sistemas e programadores envolvidos com a Internet.

O Linux tem milhares de aplicativos totalmente gratuitos, inclusive o StarOffice (www.stardivision.com), que é um software que imita (e é compativel com) o Microsoft Office 97, o carro-chefe de vendas de softwares da empresa. Com todas essas facilidades, no entanto, a esmagadora maioria dos usuários, treinados na linha Microsoft, não quer (ou não queria…) mudar de sistema operacional e de aplicativos, mesmo porque o Linux está muito longe de ser fácil de instalar e de operar como se apregoa. A campanha antipirataria foi o estímulo que faltava, pois ninguém quer pagar multas astronômicas (até 3.000 vezes o preço do software) ou ir para a cadeia.

Para se ter uma idéia do que está acontecendo, até a data fatal dada pela ABES esta semana, várias universidades, como a UNICAMP, ainda não tinham obtido da Microsoft a legalização das dezenas de milhares de cópias de softwares em seus computadores, o que na prática transfere para seus docentes, alunos e funcionários a responsabilidade criminal por qualquer cópia ilegal instalada. A ameaça às universidades, reconhecidos velhacoutos de cópias ilegais (por falta de dinheiro, mas também por cultura longamente estabelecida -- vide cópias xerox) não é vazia. Em junho, duas grandes universidades privadas de Santa Catarina foram invadidas por policiais federais com mandatos judiciais de busca e apreensão e multadas em R$ 39 e R$ 49 milhões, por causa das mais de 4 mil cópias piratas encontradas em pouco mais de 600 computadores em cada uma. Os reitores estão sendo processados criminalmente e estão sujeitos a até 2 anos de cadeia. Tendo terminado no dia 31 de agosto a trégua dada pela ABES, o pânico se instalou nas universidades paulistas. Imaginem só o tamanho da multa da Unicamp…

A reação da Unicamp a uma possível devassa da ABES está sendo uma das piores notícias do ano para a Microsoft: uma instalação gigantesca de sistemas Linux e StarOffice, que deve se completar em alguns dias, e que literalmente erradicará os produtos da Microsoft do ambiente universitário, com seus 14 mil alunos, numa instituição de elite, de enorme prestígio e penetração (mais de 40% dos seus ex-alunos estão em posições executivas). Qualquer empresa de software sabe que o treinamento dos alunos universitários usando seus produtos é absolutamente vital para a penetração dos mesmos no mundo das empresas. Por isso, nos EUA, elas doam virtualmente tudo para as universidades, e fazem questão que eles utilizem intensamente. A meu ver, a decisão da Unicamp e de outras universidades terá sérios e duradouros efeitos sobre o mercado de software no Brasil.

Vejam o meu caso, por exemplo: há 16 anos ensino informática usando em 100% os produtos Microsoft. Na impossibilidade de arranjar dinheiro para pagar as cópias atualizadas da Microsoft (nosso laboratório tem 20 máquinas, e a lei exige que se compre 20 cópias de tudo), a partir deste ano passarei a ensinar usando apenas o Linux, o StarOffice e o Netscape, inclusive mostrando aos alunos como achar os softwares gratuitos e instalá-los em seus computadores. Os sistemas são razoáveis, com interface gráfica muito parecida com a do Windows, e bem mais estáveis. Adivinhem o que vai acontecer com os caros produtos da Microsoft, uma vez que se instale uma nova cultura…

O movimento a favor da gratuidade do software é muito poderoso em todo o mundo, e recebeu um importante apoio através da Internet. A comunidade Linux é imensa, formada por dezenas de milhares de programadores jovens e talentosos, que odeiam o Bill Gates e o virtual monopólio estabelecido pela Microsoft, e que se dedicam a desenvolver programas e disponibilizá-los gratuitamente através da Internet.

Embora todo mundo que tem uma cópia ilegal de software em suas máquinas na universidade seja em última análise responsável por isso, não adianta tapar o sol com a peneira: o ensino e a aplicação da computação nas faculdades seria impossível se não fosse a pirataria, que existe de fato, precisa ser reconhecida e combatida eficazmente (ou melhor ainda, prevenida), mas sem adotar medidas radicais que seguramente levarão à paralisação de muitas e importantes atividades universitárias por dias ou semanas, pois atualmente tudo depende da informática.
 

Para Saber Mais

 
 



Renato M.E. Sabbatini é professor e diretor do Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas, colunista de ciência do Correio Popular, e colunista de informática do Caderno Cosmo. Email: sabbatin@nib.unicamp.br

Veja também: Índice de todos os artigos anteriores de Informática do Dr. Sabbatini no Correio Popular.



Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 3/9/1999 .
Jornal: Email: cpopular@cpopular.com.br
WWW: http://www.cosmo.com.br


Copyright © 1999 Renato M.E. Sabbatini, Campinas, Brazil