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Tudo dá câncer

Renato M.E. Sabbatini

Outra dia, um amigo meu, que é médico, comentava uma dessas frases que correm à boca do povo: Tudo dá câncer. A frase, com certeza, decorre de um certo viés provocado pela imprensa leiga, que toda hora está divulgando estudos científicos que isso ou aquilo dá câncer. Os hormônios na carne de frangos e bois, os preservantes químicos de alimentos, os adoçantes, o ar poluído, a água que bebemos, pesticidas, a radiação dos telefones celulares (essa, por cortesia do Prof. Vítor Baranauskas), as linhas de alta tensão, o sol, as pílulas anticoncepcionais, tudo parece ter sido implicado, com razão ou não, na chamada carcinogênese (agentes externos que causam câncer). Nos faz ficar com medo de tudo. Viver dá câncer !

Na realidade, não é bem assim. Há, digamos, um certo exagero nessa percepção. Existem poucos agentes externos que tenham sido inequivocamente ligados à carcinogênese, e, mesmo assim, só em quantidades excessivas. Um bom exemplo são os edulcorantes (adoçantes artificiais), como a sacarina. Nos anos 70, todo mundo ficou muito assustado, e o Ministério da Saúde chegou a proibir a comercialização da sacarina, quando pesquisadores norte-americanos alardearam que essa substância provocava câncer da bexiga em ratos, quando adicionada à água que tomavam. Depois, ficou-se sabendo que isso só ocorreria em um ser humano se tomássemos alguns litros de sacarina pura por dia, durante muitos anos... Tiveram que voltar atrás na proibição.

Uma conseqüência interessante disso tudo é o movimento dos alimentos naturais, que conseguiu transformar algumas pessoas em fanáticos opositores do consumo de alimentos industrializados. Nos EUA, isso gerou um comércio de bilhões de dólares, principalmente através dos fazendeiros orgânicos (sic) e supermercados especializados em produtos naturais (sic), ou seja, frangos caipiras, tomates cultivados sem pesticidas, etc. As pessoas pagam duas vezes mais por esses produtos, geralmente de qualidade inferior, de forma totalmente ingênua, acreditando que quem os produz realmente não adiciona nada de artificial ao seu ciclo de produção, colheita e distribuição. Doce ingenuidade. Um jornal americano mostrou que não é bem assim. Alguns fazendeiros usam suco de fumo para aspergir tomateiros, para evitar pragas, com o raciocínio de que é tirado de plantas naturais (sic, de novo: existe alguma planta que não seja natural ?). Ué, não é um dos mais potentes cancerígenos conhecidos ?

Comer comidinhas naturais não é garantia nenhuma que não vai dar câncer. Um nefasto hábito nacional, que é comer amendoim torradinho ou doces baseados em amendoim, como pé-de-moleque ou paçoca, pode ser fatal. O amendoim, assim como outros grãos e sementes que são armazenados em condições não ideais, ou por muito tempo, desenvolvem fungos e bolores que secretam substâncias naturais tremendamente tóxicas e carcinogên preparados e garrafadas baseados em plantas farmacoativas também é bastante perigoso. Algumas dos mais poderosos tóxicos conhecidos são extraídos de plantas, como a beladona, o curare, a psilocibina, o digitalis, a estricnina, e outros. Alguns desses agentes, como os encontrados no confrei, são nefrotóxicos (agem inativando a função renal) ou causam alterações cerebrais permanentes. Misturas de ervas podem causar a interação entre agentes farmacoativos inofensivos, tornando-as danosas para a saúde.

Enfim, nem tudo dá câncer, mas convém não facilitar...


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 25/1/96
Autor: Email: renato@sabbatini.com

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