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Cérebro misterioso

Renato M.E. Sabbatini

O acidente anestésico e coma da modelo Cláudia Liz, ocorrido durante a preparação para uma cirurgia estética de lipoaspiração, mostrou o quão pouco sabemos sobre o funcionamento do cérebro humano. Após a sua internação num dos melhores e mais bem equipados hospitais do país, o Albert Einstein, de São Paulo, Cláudia Liz foi submetida a um exame de avaliação diagnóstica modernissimo: a tomografia funcional de ressonância magnética. Pouquissimos hospitais no Brasil são capazes de fazer esse exame, e mesmo em países mais avançados, como os EUA, ele ainda não é utilizado rotineiramente.

Ao contrário da tomografia comum, mais conhecida, que utiliza raios-X, a ressonância magnética pode ser usada para avaliar não somente as alterações anatômicas do cérebro (causadas, por exemplo, por um tumor, um aneurisma intracraniano ou um derrame), mas também alterações funcionais localizadas ou difusas. Em outras palavras, pode determinar se houve alterações metabólicas e bioquímicas de certas partes do cérebro, como resultado de morte celular causada pela falta de oxigenação que ocorre tipicamente em acidentes anestésicos (por parada respiratória).

Pois bem, as imagens de ressonância do cérebro de Cláudia Liz mostraram que teria havido lesão funcional da parte do cérebro responsável pela visão, situada na superfície posterior dos hemisférios cerebrais (córtex occipital). A modelo e atriz corria o risco de ter visão subnormal ou ficar cega para o resto da vida, pois um dos dogmas centrais da neurologia (o ramo da ciência médica que estuda as doenças do cérebro) é que a morte dos neurônios, as células cerebrais, é irreversível e não se regenera.

Ao se recuperar do coma e recobrar a consciência, entretanto, uma surpresa: nenhuma alteração da visão foi observada ! Mais um mistério entre tantos que ocorrem no dia a dia de quem tenta compreender, diagnosticar e tratar alterações patológicas do cérebro. Os cientistas e médicos que trabalham nessa área já estão acostumados com a natureza altamente complexa e impredizível deste órgão. Algumas pessoas tem tumores enormes do tamanho de uma laranja, altamente destrutivos, e se recuperam sem nenhuma seqüela depois de uma cirurgia, enquanto outras têm lesões mínimas, provocadas por agentes aparentemente sem grande importância, e ficam paralíticas, cegas ou mudas para o resto da vida, quando não morrem.

Em 1990, o Congresso Americano decretou que esta seria a Década do Cérebro. Recursos financeiros extraordinários foram alocados aos grupos de pesquisa, de forma a impulsionar o nosso conhecimento sobre a estrutura, a função e as doenças do sistema nervoso. Um dos projetos, por exemplo, tem o objetivo ambicioso, equivalente ao do Genoma Humano em escopo e complexidade, de mapear as funções cerebrais e produzir uma base de dados contendo tudo o que sabemos sobre o cérebro humano. Envolve centenas de instituições em todo o mundo. Além disso, por serem muito complexas, e por evoluirem e se modificarem constantemente durante nossas vidas, as funções cerebrais são altamente variáveis de indivíduo para indivíduo, de maneiras que ainda desconhecemos. Daí ocorre a impreditibilidade a que nos referimos.

Sem dúvida, é um dos grandes desafios da ciência moderna.


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 24/10/96

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