Indice de Artigos



AIDS e Segurança Internacional

 

Renato Sabbatini


A AIDS é um problema de segurança nacional e internacional. Pelo menos é o que o governo americano decidiu agora, ao anunciar investimentos de mais de 100 milhões de dólares para combater a doença nos países pobres, principalmente na África, onde se desenrola uma tragédia de dimensões gigantescas, que pode comprometer a estabilidade econômica e política de uma região que tem 5% da população mundial, e 70% dos casos de AIDS.

O vice-presidente Al Gore enfatizou recentemente essa nova estratégia durante a primeira reunião do Conselho de Segurança da ONU dedicado a um problema de saúde, em seus 55 anos de existência. O governo americano propôs aos membros da Comissão que riscos ambientais e à saúde da população passassem a ser considerados de importância para a segurança mundial, e que a ONU e os governos dos países desenvolvidos prestassem mais atenção e ajudassem mais a combater a pandemia de AIDS, que ameaça a todos.

Ao meu ver, a ação do governo do país mais rico do planeta veio tarde de mais. Preocupado com a alta incidência de AIDS em seus próprios territórios, nos últimos 25 anos, os EUA e outros países desenvolvidos têm ignorado o problema da AIDS nos países africanos. Existe uma atitude algo racista e arrogante por trás dessa inexplicável negligência. A África sub-equatorial está coalhada de países onde quase todos os habitantes são negros, pobres e muito pouco importantes para a economia mundial. O verdadeiro massacre que está ocorrendo lá há mais de 10 anos, tem sido sistematicamente minimizado, apesar dos repetidos alertas dados pelos especialistas.

A UNAIDS, agência das Nações Unidas para a AIDS, estima que cerca de 34 milhões de pessoas, inclusive 1,2 milhão de crianças, estão infectadas com o vírus HIV. No ano passado, morreram 2,2 milhões de pessoas de AIDS no mundo, somando-se aos mais de 16 milhões de pessoas que já morreram desde o início da epidemia (só para comparar, morreram 20 milhões de pessoas na I Guerra Mundial). Se o HIV continuar a se espalhar com a velocidade atual, estima a UNAIDS, cerca de 6 milhões de novos infecções ocorrerão a cada ano, e recordes absolutos continuarão a ocorrer, ano após ano, tanto em número de mortes quanto de novas infecções. Na primeira década do novo século, poderão ocorrer mais mortes do que as causadas por todas as guerras no século 20.

A maioria das pessoas infectadas por HIV mora em países em desenvolvimento (95%), e a UNAIDS acha que essa proporção continuará a aumentar devido à pobreza, à ignorância e aos recursos limitados dos sistemas de saúde. A tragédia maior, como dissemos, está ocorrendo na África sub-equatorial. Naquela região, pela primeira vez, este ano, o número de mulheres infectadas ultrapassou o de homens, o que é o resultado do fato que, lá, a transmissão da AIDS é predominantemente heterossexual. Existem mais de 12 milhões de órfãos na África, causados pela morte dos pais por AIDS, e a expectativa média de vida irá decrescer de 59 para 45 anos de idade entre 2005 e 2010, aproximando-se do valor de um século atrás. E o pior é que a AIDS mata as pessoas na flor da idade, entre os 25 e 35 anos.

Porque os governos de paises desenvolvidos subitamente acordaram para a ameaça que representa a AIDS africana? É porque existe o perigo de toda a infraestrutura social desmoronar, devido ao número de mortes entre pessoas jovens, funcionários do governo, pessoal do setor saúde e militares. O grande número de guerras civis e guerras regionais que ocorreram e ainda ocorrem na África pioram ainda mais o problema, e existe uma interação mútua perversa. A mobilidade dos militares, e das populações em fuga espalham a epidemia com uma velocidade cada vez maior. Destruídas as instituições sociais, os países ficam cada vez mais vulneráveis ao caos e às influências políticas e militares externas, desestabilizando também paises fronteiriços onde o problema da AIDS está sob controle. O perigo é real, pois em alguns países um em cada três habitantes adultos está contaminado e vai morrer. Todo o continente está ameaçado, mas a Ásia e a Europa também (os casos de AIDS estão explodindo na antiga União Soviética). Os enormes recursos minerais africanos (ouro, platina, diamantes, urânio, etc.) deixam de ser explorados, ou ficam abertos à cobiça de quem quer. A situação pode ficar muito similar à que ocorreu na Europa no século XIII, durante a Grande Peste, que aniquilou quase 50% da população. Basta ler os relatos da época.

Os EUA prometem gastar essa dinheirama toda em medidas largamente paliativas, tais como "diminuir o estigma da AIDS", "ajudar os órfãos", "melhorar a infraestrutura de saúde dos países", etc. Algum dinheiro vai para a prevenção e para o desenvolvimento de vacinas, que são as melhores abordagens de que dispomos nesse momento (alguns países africanos, como a Uganda e Senegal, tiveram um sucesso grande nesta área, ao trabalhar com o esclarecimento dos jovens e em campanhas por sexo seguro, e conseguiram diminuir incidência e mortalidade). Os EUA também prometem envolver os seus militares no combate à AIDS, o que vai ser no mínimo interessante, pois pode causar problemas com a soberania de alguns países.

Para se safar dessa, a única e grande esperança para o mundo é achar uma cura para a AIDS, ou uma forma de prevenção efetiva através de uma vacina, que tenha o poder de extingüir a doença, como aconteceu com a varíola e está prestes a acontecer com a poliomielite. Infelizmente, não existe nenhuma vacina totalmente efetiva contra o HIV visível no horizonte, pois é muito complicado desenvolver alguma. A imunização fornecida é apenas parcial, e o vírus é muito mutante. O fato do sistema imune ser fortemente comprometido pela infecção do HIV é outro elemento que trabalha contra uma vacina. É um vírus verdeiramente diabólico, e os especialistas estão chegando à conclusão que é melhor agora concentrar em novas formas de tratamento.

Somente a ciência poderá nos livrar da AIDS, porque já se viu que mudanças de comportamento radicais são impossíveis.





Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 14/1/2000.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

WWW: http://renato.sabbatini.comJornal:http://www.cosmo.com.br


Copyright © 2000 Correio Popular, Campinas, Brazil