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Genes: públicos ou privados?

Renato Sabbatini

Uma declaração conjunta de Bill Clinton, presidente dos EUA, e Tony Blair, primeiro-ministro do Reino Unido, na semana passada, causou uma diminuição acentuada no valor das ações das empresas de biotecnologia de todo mundo. Os dois políticos disseram que os dados que estão sendo obtidos pelo mapeamento do genoma humano (o código de todos os genes contidos em nossos cromossomas) devem ser disponibilizados livre e gratuitamente para todos os cientistas e empresas interessados em usá-los.

Não adiantou a Casa Branca tentar esclarecer mais tarde que essa proposta tinha como objetivo o aumento da competição e do lucro. Livre competição é um conceito que os políticos adoram, mas que as empresas encaram com muita má vontade (quem não gosta de um cartelzinho para maximizar os lucros?). Pelo raciocínio oficial, ao se disponibilizarem os dados, as empresas poderão competir entre si para inovar, criar novos produtos e gerar lucro. Muito bonito. Mas, acontece que, com esta política, tira-se a vantagem competitiva das empresas que gastaram bilhões para descobrir novos genes. Sem a possibilidade de patentear esses genes e impedir que competidores os utilizem, todo esse dinheiro foi jogado praticamente no lixo, do dia para a noite.

Compreende-se, então, a pressa dos investidores se livrarem de suas ações o mais rapidamente possível (ação que, evidentemente, provoca baixas mais acentuadas ainda nas cotações...). O índice de biotecnologia da NASDAQ, que inclue 200 empresas americanas e européias com ações públicas, chegou a cair 14% no primeiro dia depois do pronunciamento dos dois estadistas. Entre os maiores perdedores, estão as companhias que estudam a estrutura e função de genes relacionados à doenças e os vendem a empresas farmacêuticas. A empresa Celera Genomics, fundada pelo polêmico cientista Craig Venter, é a maior delas. Seus interesses no patenteamento de genes descobertos em seus laboratórios são grandes, pois Ventner desenvolveru um método de mapeamento acelerado, que o permitirá terminar a tarefa muito antes do consórcio oficial, liderado pelo National Human Genome Research Institute, dos EUA. A Celera Genomics teve uma perda de 22% no seu valor de mercado, por "culpa" da dupla Clinton-Blair. É importante notar, no entanto, que os dois governos reafirmam a noção de que a explora&cce utilização desse conhecimento para diagnosticar, previnir e tratar muitas doenças que hoje não têm cura, como as doenças hereditárias, ou que aparecem devido à predisposições genéticas. Como o código genético é uma entidade natural, existente em nossas células, muitos cientistas sempre tiveram fortes restrições à agressividade de empresas de mapeamento genômico, como a Celera, que insistem em patentear os genes. Pior ainda, a Celera quer patentear as seqüências de DNA, sem saber para o que servem.

Segundo a renomada cientista e professora de Harvard (e campineira) Dra. Valdenize Tiziani, "a questão tem duas faces. Uma patente pode ser uma boa coisa, pois todo progresso econômico no mundo tem se baseado  na exploração dos direitos de invenção. Um gene não é uma invenção, e o seu código genético é informação, que não deve ser patenteada. Ele será a base que permitirá a descoberta de genes e sua significância, o que é um processo muito mais complexo do que simplesmente seqüenciar os genes. O aproveitamento dos genes para usos práticos, esse sim, pode e deve ser patenteado.". A Dra Tiziani está entre os poucos brasileiros que podem dizer que descobriram um gene de uma doença, portanto conhece o assunto a fundo.

Toda essa polêmica tem uma enorme importância econômica, mas ela vai muito mais além desse horizonte, pois nenhuma inovação importante na história da humanidade obteve efeitos enquanto não pode ser explorada do ponto de vista econômico. A Internet é uma das mais recentes, e a fenomenal explosão no número de computadores e usuários somente ocorreu a partir do momento em que se permitiu que surgissem os provedores comerciais de acesso e conteúdo. Antes, o modelo econômico que a sustentava era baseado em fundos governamentais (redes de apoio à pesquisa e educação), necessariamente limitados em valor e escopo. O Human Genome Project (consórcio HGP) é financiado em grande parte com recursos públicos, portanto também é auto-limitado. O mapa do genoma poderá ser público (e eu também sou uma das pessoas que defende isso), mas a sociedade precisará encontrar novos conceitos legais para permitir a sua exploração comercial, para que vingue a estrutura da medicina molecular do futuro, que beneficiará a toda a humanidade.

Fazendo uma analogia, os recursos naturais (fauna e flora terrestres e marinha, por exemplo) não podem ser patenteados (seria ridículo imaginar que uma nova planta descoberta na Amazônia fosse patenteada por seu descobridor), mas substâncias quimicas, extraidas, purificadas e processadas, com algum efeito terapêutico, podem ser patenteadas. Essa é a base da indústria farmacêutica, e não vai mudar com a indústria biotecnológica.
 

Para Saber Mais


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 31/3/2000.

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