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Gêmeos e clones

Renato Sabbatini

Cientistas "renegados" anunciaram recentemente que estão prontos para oferecer serviços particulares de clonagem de seres humanos, apesar da proibição formal para esse tipo de pesquisa imposta por muitos governos. A clonagem é a produção de um indivíduo geneticamente idêntico a outro, através da inserção do genoma completo de uma célula adulta em um óvulo, e posteriormente seu desenvolvimento em uma "barriga de aluguel". A ovelha Dolly, foi o primeiro (e mundialmente famoso) clone de um mamífero adulto, obtido por um instituto de pesquisa do Reino Unido, em 1998. Depois da Dolly, clones de vários outras espécies animais foram obtidas. Portanto, é apenas uma questão de tempo até que a ciência consiga clonar um ser humano. Os obstáculos são mais de natureza moral e ética do que tecnológica científica.

Com a notícia, imediatamente a imprensa começou o estardalhaço habitual sobre as conseqüências supostamente sinistras dessa nova possibilidade, e a avalanche de especulações sem nenhum fundamento científico. A respeitada revista Time, por exemplo, escreveu que "se for possível fazer um clone de uma pessoa, então também será possível fazer centenas de cópias". Sandice. Quem iria arranjar centenas de mães interessadas em gestar e parir cópias de uma mesma pessoa? Só se elas forem presas e obrigadas pelo Sadam Hussein ou algum outro ditador psicopata.

O problema é que a palavra clone transmite popularmente a idéia de uma cópia perfeita de um ser vivo. A palavra se originou no reino vegetal, onde o processo é usado há muito tempo pelos agricultores para produzir um pomar ou uma horta inteira de plantas geneticamente idênticas, tais como macieiras. Também dá uma idéia de cópias indistingüiveis de um original, geralmente para fins fraudulentos, tais como placas de automóveis, telefones celulares, cartões de crédito, etc.

No entanto, essa idéia de identidade total de um clone não se aplica a um ser humano. Basta ver os resultados de um "experimento" natural de clonagem, que são os gêmeos univitelinos. Seus genomas são idênticos, pois se originam do mesmo par espermatozóide/óvulo dos seus pais. Portanto, eles deveriam ser duas cópias iguais da mesma pessoa. Será que por causa disso poderíamos considerá-los como sendo a mesma pessoa? Tem gente que acha que sim.
É uma noção intrigante, sem dúvida, mas que não corresponde à realidade. Ainda dentro do útero, a estrutura e as funções dos organismos dos dois gêmeos univitelinos começam a divergir de forma irreversível, de tal modo que, quando eles nascem, e mais ainda, quando crescem até a vida adulta, tornam-se duas pessoas distintas, cada uma com sua personalidade, trajetória de vida e memórias. Eles podem até ser praticamente idênticos em termos de aparência, anatomia externa e interna, etc., mas seus cérebros, que abrigam a base da individualidade, que são a consciência e a memória, já se tornaram bem diferentes, e nesse sentido continuarão a evoluir pelo resto de suas vidas.

E porque ocorre isso? O cérebro é o maior fator de diferenciação dos gêmeos univitelinos pois ele se desenvolve de formas distintas, dependendo de sua interação com as situações, circunstâncias e estímulos ambientais ao longo da vida. É impossível replicar exatamente o mesmo curso de eventos, as mesmas experiências e as mesmas situações ambientais para ambos os gêmeos. Além disso, os neurônios (células do sistema nervoso) seguem padrões parcialmente aleatórios de formação de conexões durante o desenvolvimento embrionário e fetal, de modo que simplesmente não existe nenhum cérebro que seja igual a outro quando do nascimento, até mesmo em gêmeos univitelinos. Fora isso, ao longo da infância o desenvolvimento do cérebro segue caminhos distintos para dois indivíduos, e o resultado final é que, embora sejam parecidos em muitas coisas, os gêmeos jamais serão idênticos.

Portanto, quem acha que vai obter uma cópia de si mesmo ao encomendar um filho clonado a partir de suas células, vai ter uma grande decepção. Os gêmeos geralmente ainda compartilham a mesma época de crescimento e o mesmo ambiente. Um filho clonado terá um curso de vida radicalmente diferente e isso, evidentemente terá repercussão sobre seu comportamento, personalidade, memória, emoções, etc.

Essas reflexões nos levam automaticamente à outra, que tem atormentado filósofos e cientistas nos últimos séculos, por assim dizer. Se a consciência e a memória cumulativa são os elementos integrativos que definem o indivíduo, e se o cérebro muda quase tanto quanto os outros tecidos ao longo da vida, será que somos a mesma pessoa todo o tempo? Será que o Renato Sabbatini com 2, 10, 30 e 50 anos de idade são pessoas diferentes? O que significa ser uma "pessoa", afinal? Será o conjunto definido de elementos físicos e mentais?

Os religiosos não têm muita dúvida: para eles, essa unidade é dada exclusivamente pela alma imortal, concedida por Deus, e que habita nossos corpos perecíveis por um certo tempo. Como se fosse um "fantasma da máquina", do livro de mesmo título do grande divulgador científico Arthur Koestler. A máquina seria nosso corpo, e a alma (ou consciência), o fantasma que a habita…

Não é à toa que ciência e religião são mutuamente incompatíveis. Como já temos provas definitivas e irrefutáveis que a personalidade, a inteligência e a memória são determinadas pela atividade de bilhões de neurônios, e que elas podem mudar radicalmente em função de mudanças físicas, químicas e ambientais no cérebro; então é óbvio que não existe uma unidade nem uma permanência das características da alma. Mesmo porque é o código genético (o DNA) que determina como serão esses tecidos e o que eles são capazes e não são capazes de fazer. E o DNA, por ser uma molécula com existência física, transmite-se bem entre seres vivos através da herança, mas não entre mortos e vivos.


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 16/3/2001 .
Autor: Email: renato@sabbatini.com

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