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Acupuntura funciona?

Renato Sabbatini

Um dos temas recorrentes em minha coluna de ciência no Correio Popular tem sido a chamada medicina alternativa (ou medicina complementar, um termo que foi inventado para dar uma conotação mais "oficial" e séria, desvinculando algumas correntes do charlatanismo rampante que assola a área…). Não é segredo para ninguém que me lê regularmente que tenho assumido sistematicamente uma postura crítica, contestando as bases científicas dessas práticas, como são alegadas por seus numerosos defensores. Aliás, minha série de artigos sobre a homeopatia e outras medicinas alternativas (que podem ser encontrados no site www.ceticos.org) causaram uma grande polêmica em 1998, e até virou tema de uma tese acadêmica, defendida pelo jornalista campineiro Valdir Gomes, no curso de pós-graduação em jornalismo científico da Universidade Metodista de São Paulo.

Agora chegou a vez de examinarmos a acupuntura, por insistência e pedido de vários leitores. Acupuntura, como os leitores certamente sabem, é uma prática médica milenar, de origem chinesa, e que consiste de realizar estimulações nervosas através de agulhas inseridas na pele, pressão com os dedos ou outros instrumentos (acupressão), ou por pequenas mechas em brasa (moxibustão). O princípio da acupuntura é o mapeamento de determinados pontos-chave na superfície do corpo, que fariam parte de um sistema de fluxo energético do organismo, derivado da famosa dupla ying/yang de energias antagônicas. Cada ponto, quando estimulado pelas técnicas descritas acima, causaria um determinado tipo de efeito, sobre um órgão, sistema ou região do corpo. Por exemplo, quando o dentista tradicional chinês deseja anestesiar a região da maxila, para efetuar uma extração dentária, ele estimula pontos localizados próximos ao pulso, que segundo a teoria da acupuntura, é o ponto relacionado da linha energética.

A acupuntura foi "redescoberta" pela medicina ocidental na década dos 70s, quando a filosofia oriental foi apropriada pelos hippies e outros movimentos sociais alternativos em rebeldia contra o "establishment" americano responsável pela Guerra do Vietnã. Dezenas de milhares de praticantes alternativos e até médicos realizaram visitas para aprender as técnicas chinesas de acupuntura. O governo chinês, naturalmente tomado de grande zelo patriótico e propagandístico, inundou o ocidente com vídeos de pessoas fazendo cirurgias imensas, parto cesariano, etc., sob anestesia supostamente realizada por acupuntura.

Na China e em outros países orientais, a acupuntura faz parte de uma extensa cultura tradicionalista, que envolve muitos aspectos da sociedade e de sua história e organização. Portanto, faz sentido lá. Mas, transplantada para o ocidente unicamente como mais uma técnica de diagnóstico e tratamento, ou seja, como uma espécie de "bala mágica" para os milhões de pacientes desencantados com a ineficácia e a agressividade da medicina curativa ocidental, ela se descaracterizou.

Vem então, naturalmente, a pergunta (tipicamente ocidental: um chinês jamais faria essa pergunta): a acupuntura funciona? E porque funciona, ou seja, qual é o seu mecanismo de ação? A medicina ocidental então passou a examinar as alegações extraordinárias da medicina tradicional chinesa sobre o poder curativo da acupuntura. Em muitos casos, constatou que, aparentemente, ela funciona razoavelmente bem para diminuir alguns tipos de dores. Mas só isso. Rejeitou como não comprovada a imensa maioria das alegações de eficácia de tratamento para outras coisas.

Só para o leitor ter uma idéia, a Associação Médica Brasileira de Acupuntura (www.amba.org.br) coloca em seu site e folhetos uma lista das doenças para as quais a acupuntura seria capaz de curar: doenças respiratórias, bronquite, asma, rinite, sinusite, faringite, cálculos renais, inflamação renal, incontinência urinária, prostratite, cistite, impotência, frigidez, cisto de ovário, mioma, TPM, menopausa, andropausa, varizes, flebite, arritmia simples, anemias, seqüelas de derrames cerebrais, reabilitação do infarto e hipotensão, doenças do aparelho digestivo, hepatite C, diarréia, vômito, enjôos, úlcera, gastrite, colite, hemorróidas, prisão de ventre, vesícula biliar "preguiçosa", insuficiência hepática, cirrose, doenças reumatológicas, lesões esportivas, artroses, artrite, psoríase, vitiligo, esclerose múltipla, dor ciática, síndrome túnel carpeana, lesões por esforços repetitivos, seqüelas de derrames, neurites, nevralgias, paresias, paralisias, traumatismos crânio-encefálicos, caimbras, enxaquecas, dores de cabeça, mal de Alzheimer, depressão leve e moderada, esquizofrenia, ansiedade, stress, insônia, irritabilidade, medos, fobias, nervosismo, preocupações, tristeza e melancolia. Ficaram famosos, também, os usos da acupuntura para parar de fumar (ponto na orelha), largar drogas de adição, e emagrecer (inibição do apetite).

Evidentemente, é uma lista difícil de acreditar. Toda vez que uma medicina alternativa qualquer propõe ser eficaz, com um único procedimento, contra uma gama tão ampla de doenças, com origens tão diferentes, isso geralmente cheira a curandeirismo sem bases científicas.

No Brasil, a acupuntura é reconhecida como especialidade médica, conforme deliberação do Conselho Federal de Medicina (Resolução Normativa 1455/95). Atualmente é utilizada em escala ainda relativamente modesta, principalmente para doenças osteomusculares e dores crônicas. De acordo com o Prof. Ysao Yamamura (chefe do Setor de Medicina Chinesa e Acupuntura da Escola Paulista de Medicina, uma das únicas faculdades de renome a abrigar essa especialidade), “o reconhecimento da acupuntura como especialidade médica abriu novas perspectivas para o profissional que procura essa especialização. Os cursos puderam ser ministrados em universidades, e os seguros de saúde e os convênios particulares passaram a cobrir as despesas com o tratamento”.

É um bom negócio, sem dúvida, pois uma única aplicação custa entre 50 a 180 reais. Geralmente são necessárias dez ou mais aplicações. Hoje, existem cerca de 80 serviços espalhados por quase todos os estados do país, com um atendimento médio de 12 mil consultas por mês. Ainda são poucos os convênios que pagam essa prática, no entanto. Logo, a maioria dos pacientes é particular (uma raridade nos consultórios médicos...).

Mas será que a acupuntura tem efeito mesmo? Para dar um embasamento mais cientifico ao debate, eu fiz uma pesquisa no MEDLINE, que é a base de dados bibliográficos mais séria da medicina. Procurei especificamente por análises da eficácia da acupuntura em quatro áreas: doenças osteomusculares, algias crônicas e agudas (dores), cessação de tabagismo e perda de peso e apetite. No meu site (www.nib.unicamp.br/recursos/acupuntura), os leitores mais curiosos poderão achar um resumo das conclusões dos estudos mais sérios, bem como as respectivas referências bibliográficas.

Resumindo, a conclusão é a seguinte: os resultados de pesquisas médicas sobre a acupuntura são contraditórios, e dependem muito da qualidade do estudo e da tendência pessoal dos pesquisadores. Em geral, estudos metodológicos mais bem feitos mostram que a acupuntura não tem nenhum efeito superior ao placebo em dores crônicas das costas, cessação de tabagismo, perda de peso e apetite e doenças reumáticas. Parecem ter algum efeito em dores agudas de dente, dores de cabeça e dores causadas por disfunções da articulação temporo-mandibular, mas não são efeitos fortes (poderiam ser causados por outras coisas além das alegadas pelas bases teóricas alegadas para a acupuntura).

Mas quais são essas bases? Evidentemente, não pode ser o que a medicina tradicional chinesa explica. Vejam essa “explicação” dada por um especialista da Associação Médica Brasileira de Acupuntura para o tratamento da doença do pânico:

 
"Retiramos o fogo do coração, em excesso, e as mucosidades. Normalmente, os pacientes estão com aumento do Yang, que deve ser diminuído. As mucosidades devem ser restringidas, porque obstruem os orifícios e impedem a subida do Shen do coração. Deve-se fazer os pontos do coração, todos aqueles ligados ao fogo, ao Yang. O tratamento do pânico e da ansiedade envolve uma síndrome de deficiência de Qi do coração, que deve ser tonificado. Também o Yin deve ser aumentado. E limpa a estase sanguínea do órgão. O rim precisa ser tonificado”.
Do ponto de vista científico não faz o menor sentido, pois a síndrome do pânico é uma doença mental, e que, portanto, tem seus mecanismos mediados pelo sistema nervoso, e não pelo coração. Estase sangüínea e os rins também não têm nada a ver com ela. Na maior parte, são conceitos anteriores a Aristóteles, que já foram amplamente refutados pela ciência. Portanto, se existe algum efeito, a explicação deve ser outra.

A ciência experimental pode ter achado algumas pistas importantes. Eu fui durante muitos anos docente do Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, uma entidade que dispensa explicações, por sua seriedade. No meu departamento, a Dra. Maria Carmela Lico (já falecida), uma neurofisiologista reconhecida internacionalmente, chegou a fazer alguns experimentos de acupuntura em cobaias (inibição de reações comportamentais à estimulação elétrica dolorosa da polpa dental). Funcionava bem, ou seja, era estatisticamente significativo, e objetivamente demonstrável. Posteriormente, com outro pesquisador do Departamento de Farmacologia, a Dra Lico demonstrou que o efeito era mediado por um transmissor polipeptídico isolável do plasma das cobaias. O isolado era capaz de reproduzir os efeitos sem a estimulação elétrica. Mais tarde chegou-se à conclusão que era uma substância da classe das endorfinas, que são uma espécie de analgésico natural fabricado internamente em nosso cérebro. Aliás, essa é base mais alegada para os efeitos da acupuntura sobre as dores. Mais recentemente, trabalhos como esse foram muito criticados, por representarem efeitos inespecíficos dos mecanismos fisiológicos da dor, e praticamente sumiram da literatura científica séria.

Em suma, para um médico sério que deseja estudar e usar a acupuntura, existe um risco grande de credibilidade. Muitos são acusados, até, de serem charlatães. A palavra charlatão vem do italiano,”ciarlatano”, que significa “vendedor, em lugares públicos, de drogas cujas virtudes apregoa exageradamente; aquele que explora a boa-fé do público; impostor; mau médico.” É exatamente aqui que a coisa pode pegar. A resolução do CFM e o reconhecimento oficial da acupuntura como especialidade médica pela Associação Médica Brasileira afasta esse perigo imediato. Mas não o protegem, se o médico acupunturista resolver utiliza-la como panacéia, ou seja, uma cura para muitos males para os quais não existe comprovação científica.

Agradecimentos

Agradeço ao colega Daniel Sottomaior pela contribuição dada ao artigo, fornecendo valiosas informações.

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 25/7/2001 e 3/8/2001.
Autor: Email: renato@sabbatini.com

WWW: http://renato.sabbatini.com
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