Entre uma das numerosas mensagens que recebo todos os dias pelo correio eletrônico (praticamente não recebo mais cartas), uma me chamou a atenção outro dia: a mãe de um rapaz com depressão profunda, desesperada, pedia ajuda, alguma orientação, uma luz. Seu filho praticamente não saia mais do quarto, tinha parado de trabalhar, não queria falar com ninguém, e vivia, segundo ela, "sem ver a luz no fundo do túnel, como que sufocado por um coberto negro e pesado, tirando toda a vontade de continuar a viver". Já tinha tentado o suicídio por duas vezes. A família o mantinha sob vigília constante. Tinha tentado de tudo: perdera a conta de quantos médicos e psicólogos tinha consultado, os melhores especialistas da cidade e de São Paulo, os remédios fortissimos e com muitos efeitos indesejáveis, recorrera até mesmo a médiuns e curandeiros. Todos os efeitos duravam pouco, eram passageiros e logo perdiam a eficácia. A depressão voltava. O que fazer ?
Não sou psiquiatra, nada pude fazer, a sensação do paciente, dos médicos e de todos os que têm contato com casos semelhantes de depressão intratável (dizem que chega a 50 % dos pacientes graves) é de total impotência e incompreensão. Qual a causa de doença tão devastadora ? Como curá-la se não sabemos sua causa ?
Dizem que a psiquiatria é a última das especialidades médicas a se tornar científica. Foi durante muito tempo uma ciência meramente classificatória, ou seja, apenas diagnosticava, e com um alto grau de imprecisão. O número de sistemas de classificação das doenças mentais espanta o leigo. Em depressão, existem pelo menos sete sistemas, que usam critérios diferentes de diagnóstico e nomes diferentes para as doenças. Os sintomas das diversas síndromes se superpõem e confundem. Em esquizofrenia, são pelo menos onze sistemas em uso corriqueiro, mas acredita-se que existam mais de vinte. A maioria foi abandonada,mas ainda existem classificações do século passado que ainda sobrevivem nas mãos de alguns psiquiatras. Com tudo isso, as vezes é difícil fazer dois psiquiatras concordarem quanto ao diagnóstico de um mesmo paciente, o que demonstra a alta subjetividade das avaliações.
Aliás, dizem que uma ciência que tem muitas "escolas", não é ciência, pois a verdade científica é só uma. Quando se desconhece algo, as opiniões e "achismos", as construções teóricas sem fundamentam se multiplicam. Se na área de diagnóstico já é ruim, imaginem quando se trata da terapia. É só olhar a história dos movimentos psicanalíticos, iniciados pelo "pai de todos", o médico e psiquiatra vienense Sigmund Freud. Parece a história do Partido Comunista: é uma seqüência de brigas, dissidências, sub-dissidências e ramificações; cada uma se achando dona da verdade e esculhambando com as outras. Parece ideologia, religião !
Um artigo recente na prestigiosa revista Scientific American examinou comparativamente a eficácia de dezenas de abordagens psicoterapêuticas, desde as besteiras do tipo "grito primal", até a supostamente "científicas" psicanálise tradicional, passando pela psiquiatria biológica, que usa (e as vezes abusa) de medicamentos psicotrópicos. O resultado foi que quase todas tinham a mesma eficácia, baixa (ao redor de 40 %), e que não era muito diferente do efeito placebo ou da mera passagem do tempo !
Felizmente, a psiquiatria tem avançado rapidamente neste final de século, movida pelos estudos biologicos da relação entre o cérebro e a mente na doença mental. Existem atualmente técnicas de obtenção de imagens funcionais (que mostram graficamente o cérebro em funcionamento) que ainda não estão disponíveis no Brasil, como o PET (tomógrafo de emissão positrônica), que estão revolucionando as pesquisas e a prática clínica em psiquiatria. Por exemplo, recentemente se demonstrou que uma área do cérebro desses pacientes com depressão grave e intratável, chamada córtex límbico subgenual, apresenta uma perda de até 50 % no número das células. Não se sabe ainda se a morte celular é causa ou conseqüência da doença, mas é uma correlação importante.
Fazendo uma pequena (e ligeiramente injusta) comparação, a compreensão das causas do diabetes e seu tratamento eficaz só foi possível a partir das descobertas dos cientistas canadenses Banning e Best, na década dos 20s, que demonstraram o papel da falta de insulina na doença, e como o diabetes podia ser corrigido com um simples regime de reposição da insulina através de injeções. Antes disso, o diabetes era conhecido, e altamente mortal, e as dezenas de tratamentos empíricos propostos eram ineficazes, mas mesmo assim, usados..
A psiquiatria só será ciência, a última das ciências médicas, no título do excelente livro do médico e divulgador americano Lewis Thomas, quando conhecermos com precisão o mecanismo fisiopatológico das doenças mentais. Mas isso ainda está muito longe de acontecer, devido à complexidade do cérebro, e ao peso dos fatores psicológicos.
Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 3/7/98.
Autor: Email: renato@sabbatini.com