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 A corrida pelo genoma

 

Renato Sabbatini

Uma corrida alucinada para desvendar todo o genoma humano (e, de quebra, de muitas outras espécies vegetais e animais), está caracterizando o cenário da "big science" neste final de século.  "Big science", em outras palavras, é ciência de gente grande, com altissimos orçamentos, na casa dos bilhões de dólares. Bons exemplos são a exploração espacial, a pesquisa em AIDS e câncer, a engenharia genética, a física de altas energias e de partículas sub-atômicas, a microeletrônica, etc.

A dominância econômica e política de um país ou grupo de países cada vez depende do investimento feito nessas áreas, e de vencer a corrida por produtos que tenham relevância direta para o setor produtivo. Portanto, não foi apenas por amor à ciência que os EUA criaram um dos maiores projetos de "big science" do mundo, o Projeto Genoma Humano (HUGO), que tem como objetivo identificar o código genético de todos os genes humanos. Muitos desses genes, particularmente os que são ligados à doenças, têm enorme potencial comercial para a descoberta de novos tratamentos, medicamentos, etc. Todas as indústrias farmacêuticas de grande porte instituiram projetos de ciência genômica, como é chamada atualmente, e de biotecnologia (engenharia genética), que irão desenhar a cara da medicina do futuro. As contratações de especialistas nessa área está absolutamente frenética, havendo uma verdadeira "caça às cabeças", de competição, mesmo, pelos melhores cientistas e técnicos habilitados.

Infelizmente, o Brasil não tem competitividade na grande maioria das áreas da "big science". Estamos fora, pois não há massa crítica de cientistas e dinheiro suficiente para apoiá-los. Ou melhor, tinha. Pelo menos quanto à pesquisa de genomas, São Paulo acaba de deslanchar um projeto grandioso, de classe internacional, chamado "Genoma Humano do Câncer", que tem como objetivo gerar entre 500 e 750 mil seqüências de genes a partir de materiais tirados de alguns tipos de câncer mais comuns no país: cabeça e pescoço, útero e estômago. O projeto será financiado inicialmente pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e o Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer (uma instituição internacional, sediada em Nova Iorque e com centros em vários países, inclusive em São Paulo, o qual é coordenado pelo cientista da USP, Prof. Ricardo Brentani), com uma verba de cerca de 20 milhões de dólares.

Não é muito dinheiro perto dos projetos americanos e internacionais (diz-se que o projeto HUGO irá custar 10 bilhões até a sua finalização!). No entanto, ele vai se concentrar apenas em determinados tipos de células, e não em todo o genoma. Os projetos genômicos da FAPESP são muito inteligentes e econômicos, pois são virtuais, ou seja, não existe fisicamente um prédio próprio, estrutura administrativa, etc. Eles são tocados por uma rede de laboratórios associados, situados em universidades paulistas, e que têm o nome de ONSA (Organização para Seqüenciamento e Análise de Nucleotídeos), e cujo logotipo é, apropriadamente, uma onça. Trata-se de uma pequena provocação e uma brincadeira com uma das mais poderosas organizações de seqüenciamento genético, a TIGR (The Institute for Genome Research, o Instituto para Pesquisa do Genoma), situado nos EUA e que tem descoberto novos métodos para seqüenciamento genético ultra-rápido. Explica-se: o seu símbolo é um tigre...

O inegável mérito do projeto da FAPESP é,.como disse em tom de brincadeira o Dr. Edward McDermott,.presidente do Instituto Ludwig, "entrar na festa sem ter sido convidado". Devido ao enorme potencial econômico do genoma humano, o desenvolvimento do projeto ficou restrito a poucos países, justamente os mais ricos. O Brasil entrou apenas com um ou dois laboratórios, de forma pouco relevante. Agora, com a ONSA, entramos em grande estilo, pois o projeto utilizará uma metodologia extremamente nova  e produtiva, chamada ORESTES, e que gera seqüências genéticas relevantes, em pouco tempo. A  sigla não significa muito para um leigo, terei que escrever um artigo a parte para explicar no que consiste. O importante para saber é que esse método foi inventado pelo pesquisador-chefe do projeto, Andrew Simpson, que trabalha no Ludwig, e que ele foi patenteado, com um usufruto de 50% para a FAPESP.

A FAPESP, que é presidida por um docente da UNICAMP, o Prof. Carlos Henrique de Brito Cruz, e que tem como diretor científico o docente da USP, Prof. José Fernando Perez, está de parabéns. Ë um projeto ousado, pioneiro, e que, segundo as palavras do Prof. Fernando Reinach, Secretário de Desenvolvimento Científico do Ministério de Ciência e Tecnologia, "deveria por a pá de cal final no complexo de inferioridade da ciência brasileira... Temos condições de competir com pé de igualdade, e de entrar nessa festa para fazer um estrago - no bom sentido". Essa ousadia, utilizando preciosos recursos do contribuinte paulista de uma forma criativa e eficiente, surgiu do grande sucesso do primeiro projeto genômico financiado pela FAPESP. Temerosos de que não fossem capazes de fazer um projeto de grande envergadura, os cientistas paulistas montaram a ONSA com um objetivo mais modesto: sequenciar todo o genoma de uma bactéria, a Xylella fastidiosa, que provoca em um terço dos laranjais paulistas a doença conhecida popularmente como "amarelinho" (científicamente conhecida como CVC: clorose variegada dos citros). Em menos de dois anos de trabalho intenso de vários laboratórios, concluiu-se a tarefa, ao mesmo tempo capacitando todo o pessoal envolvido. Isso deu muito ânimo e auto-estima, possibilitando vôos mais ousados como o do Genoma do Câncer.

Numa época em que só vemos os noticiários falando de corruptos, roubalheiras, achaques e dinheiro do contribuinte esvaindo-se pelo saco sem fundo de alguns políticos e juizes, é reanimador ver que nossos impostos podem ser bem utilizados em benefício da humanidade.
 

Para Saber Mais

 

 
 
Renato M.E. Sabbatini é professor do Departamento de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas, coordenador do Núcleo de Informática Biomédica da Universidade Estadual de Campinas, e colunista de ciência do Correio Popular. Email: renato@sabbatini.com 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Coluna "Noosfera", p. 3, Campinas, 7/5/99.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

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