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A Síndrome do Descontrole

 

Renato Sabbatini

O que faz uma pessoa explodir de raiva homicida, como aconteceu no dia 29 de julho de 1999, em Atlanta? Um homem, corretor de valores, até então considerado por todos uma pessoa normal, trucidou sua família (mulher e dois filhos) e depois entrou em duas corretoras e matou mais 9 pessoas inocentes a tiros. Até então, como acontece em tantos casos semelhantes, era considerado uma pessoa boa e equilibrada pelos vizinhos e parentes.

A resposta parece estar em uma série de descobertas científica recentes. E essa resposta é bastante simples, um conceito fundamental: o balanço das emoções positivas e negativas, e das emoções que são "guardadas" ou "tiradas para fora" é tão essencial para a nossa saúde como uma dieta alimentar bem equilibrada, exercício, etc. Como disse um especialista na área: "A raiva é uma espécie de colesterol emocional. Se não for controlada, ela pode causar a doença e até a morte".

A chave da questão é que a mente e o corpo são inseparáveis. Muitas filosofias e religiões sabem disso há muito tempo, mas foi graças a novos e poderosos métodos de estudo do cérebro e dos outros sistemas orgânicos pela ciência, que se sabe que o cérebro controla muitas funções corporais, inclusive o sistema imune, que nos protege contra a invasão por corpos estranhos. Mas a mente vive dentro do cérebro, utiliza os mesmos circuitos cerebrais. Ë inevitável, então, que existam pontos onde o estado mental inflluencia o estado físico. Isso é sabido pelos praticantes primitivos de medicina há muito tempo, tanto é que uma boa parte da chamada medicina "xamanística" (baseada no curandeiro tribal, ou xamã) é devida ao poder da sugestão do médico sobre o paciente.

As pessoas com emoções reprimidas ("voltadas para dentro"), que não se abrem e sofrem em silêncio, embora sejam mais fáceis de suportar, do ponto de vista social, são as que mais sofrem de uma série de doenças somáticas de fundo emocional (as doenças somatoformes, como são chamadas atualmente as doenças psicossomáticas). As emoções guardadas por muito tempo detonam uma complexa série de reações químicas e físicas dentro do corpo, que acabam por "sabotar" o funcionamento do sistema imune. Essas pessoas, então, têm com maior facilidade doenças como artrite e outras doenças reumáticas e da pele, bem como infecções repetidas e até câncer e leucemia. Elas também são mais sujeitas a algumas doenças mentais, como depressão e ansiedade. E a depressão é realmente terrível, pois deixa a sua marca em tudo o que o individuo é, pensa ser, gostaria de ser ou tenta ser. É fatal, pois é a maior causa de suicídios em todo o mundo (50%).

Um cientista da Universidade da California em Los Angeles, o Dr. George Solomon, foi um dos primeiros a demonstrar essa ligação entre repressão das emoções e as doenças. Ele mediu a quantidade de células de defesa imune no corpo de voluntários, antes e depois de provocá-los violentamente. Os pacientes aos quais não se era permitido reagir à provocação apresentavam uma queda muito mais substancial nessa quantidade do que os que era permitido se expressar e defender-se. Se a pessoa explode emocionalmente depois de "armazenar" emoções negativas durante todo o tempo, ela corre um risco duas vezes maior de ter um derrame cerebral do que uma pessoa que não faz isso. Também sofre de maior incidência de pressão alta e infarto do coração.

O grau de hostilidade presente na personalidade do indivíduo tem um papel importante na saúde do corpo. Outra pesquisa na Universidade Duke, nos EUA, demonstrou que pessoas com alto índice de hostilidade têm quatro vezes mais chances de ter uma doença das artérias coronárias do que pessoas de mesma idade e sexo. São, muitas vezes, as pessoas que têm a chamada "personalidade tipo A", geralmente executivos, que trabalham sob alta pressão. Aliás, essa teoria da classificação das personalidades em três tipos básicos, A, B e C, foi uma das descobertas mais interessantes no campo do estresse e das doenças mentais e orgânicas causadas por ele. A personalidade tipo A tem dois componentes: o primeiro é a impulsividade e a impaciência (detesta esperar em filas, por exemplo), está sempre apressado, não pára quieto um instante, faz várias coisas ao mesmo tempo, fala na frente dos outros quando está conversando, é um dominador social, mandão, etc. O segundo componente é a hostilidade ("pavio curto", fala bruscamente com as pessoas, é considerado arrogante). Todo mundo conhece pelo menos uma pessoa com essas características: elas geralmente assumem a  posição de líderes ou grandes empreendedores, por isso é também chamada da "personalidade de executivo".

O pessimismo é outra espécie de doença. São as pessoas negativistas e sem futuro, que reagem reflexamente com emoções negativas a tudo que acontece de ruim, generalizando esses sentimentos para todas as situações e aspectos da vida. Os estudos científicos também conseguiram mostrar inequivocamente que os pessimistas vivem menos do que os otimistas, porque seus organismos reagem mais violentamente ao estresse, com maiores prejuízos.

Genética, agressividade, abuso de drogas e crime também estão interligados. O ambiente e os genes agem em conjunto ao longo do desenvolvimento de um ser humano para gerar alguns fatores que determinam a personalidade e definem a maneira como ele interage socialmente, tem sucesso ou insucesso nas coisas que faz, é bem ou mal aceito pela sociedade, etc. Um estudo recente feito com uma família na Holanda, a qual tinha uma alta proporção de criminosos violentos entre seus membros (pessoas altamente agressivas, com problemas de alcoolismo e dependência de drogas), mostrou que havia um defeito genético em comum, responsável pela alteração de uma enzima chamada MAO (monoamino-oxidase). Esse defeito provocava um alto nível de um neurotransmissor cerebral (substâncias químicas usadas pelas células nervosas se comunicarem entre si) chamado serotonina, em algumas partes do cérebro.

Pessoas com excesso de serotonina são muito agressivas, e têm uma síndrome de descontrole (perdem o controle emocional facilmente, "explodindo" de raiva e praticando atos agressivos descontrolados), que, muitas vezes, não é sua culpa. O criminoso de Atlanta, um empresário de classe alta de Curtiiba que assassinou seu filho de 4 anos pulando repetidamente com os dois pés sobre ele quando ele começou a choramingar,.o rapaz de Jundiai que esfaqueou violentamente uma moça apenas porque trocou o disco na vitrola do bar onde estavam; todos esses exemplos do nosso cotidiano cada vez mais horrendo, explorados pelas manchetes policiais e programas de auditório, representam casos de síndrome de descontrole emocional, que quando ocorrem, funcionam como se a pessoa se tornasse um robô mecanizado, presa de impulsos irresistíveis.
 
Seguramente uma enorme proporção de crimes violentos em nossa sociedade são devidos a coisas como essas. Elas parecem estar aumentando, porque as drogas como álcool, maconha, cocaína, ecstasy, e outras, alteram profundamente o metabolismo da serotonina no cérebro. Já se demonstrou que esses fatores são correlacionados, e têm um fundo genético. A melhor compreensão e o tratamento efetivo desses fatores poderão ser mais efetivos para diminuir o nível de violência em nossas cidades do que toda a polícia e as prisões desse mundo. Só que ninguém está fazendo nada para isso.

Qualquer um de nós já encontrou na vida uma pessoa de personalidade hostil, arrogante, autoritária, que não hesita em pisar nos subordinados para conseguir o que quer. Esse tipo de pessoa causa grande estresse e sofrimento no ambiente familiar e no profissional. Embora ele também sofra repercussões sobre sua saúde, são os que o cercam, ou pior, os que dependem dele por algum motivo, que acabam sendo os mais prejudicados. São o que chamamos eufemisticamente de "pessoas de convivência difícil". Em períodos de guerra, crise econômica severa, surtos epidêmicos ou conflitos políticos, etc., essas "pessoas difíceis" podem adquirir o status de líderes regionais ou nacionais, tais como Adolf Hitler, Stalin, Saddam Hussein, Idi Amin, etc. Quando eles alcançam posições de poder, podem então causar danos imensamente maiores aos outros do que como simples indivíduos (Hitler e Stalin juntos foram responsáveis diretos pelas mortes de quase 100 milhões de pessoas).

Por representarem o contra-senso total a tudo o que é necessário para se conviver bem em sociedade, esse tipo de personalidade é denominado de anti-social. Não é a mesma coisa a que se refere o termo de uso comum da linguagem, que é a de um indivíduo arredio, tímido, que não gosta do convívio social e do contato com outras pessoas. Na realidade, o anti-social (ou sociopata) gosta muito de viver em sociedade e de interagir com as outras pessoas, mas para usá-las para seus próprios fins, sem a menor consciência social, empatia humana ou remorso.

A ciência médica tem estudado muito a personalidade anti-social na última década, e chegou a resultados surpreendentes e alarmantes. Trata-se de uma doença, que recebeu o nome oficial de Distúrbio de Personalidade Anti-Social (DPA) ou Distúrbio de Personalidade Dissocial (DPD). Sua causa é totalmente desconhecida, mas firma-se desde cedo (pode ser diagnosticada já na adolescência), afeta principalmente pessoas de sexo masculino (90%) e não tem nenhuma cura conhecida, nem através de medicamentos, nem por meio de psicoterapia. O mais impressionante é que aproximadamente uma em cada 100 pessoas sofre de DPA em maior ou menor grau. Nos casos menos extremos, temos as pessoas consideradas simplesmente egocêntricas e aproveitadoras. Nos casos mais extremos, sabe-se que uma grande proporção de criminosos violentos em nossa sociedade (em torno de 25% dos prisioneiros) e praticamente todos os "serial killers", sofrem de DPA. O estrago é grande: nos EUA, mais da metade dos policiais mortos por criminosos foram vítimas de sociopatas. O DPA é comum entre dependentes de drogas, bandidos, terroristas, sádicos, torturadores, etc. Além disso, os sociopatas têm uma probabilidade três vezes maior de reincidir em comportamentos violentos do que os criminosos comuns (não sociopatas). O Dr Robert Hare, um psicólogo canadense que é um dos maiores especialistas em APD, disse o seguinte:

 "Trata-se de pessoas que usam o charme, a manipulação, a intimidação e a violência para controlar os outros e para satisfazer suas próprias necessidades. Em sua falta de consciência e de
sentimento pelos outros, eles tomam friamente aquilo que querem, violando as normas sociais sem o menor senso de culpa ou arrependimento [...] É enorme o sofrimento social, econômico e pessoal causado por elas. Para estes indivíduos, as regras sociais não são uma força limitante, e a idéia de um bem comum é meramente uma abstração confusa e inconveniente".

De fato, muitas pessoas têm APD e não sabem disso (às vezes, até as pessoas mais próximas, como mulheres e filhos, também ignoram esse fato). Políticos corruptos e cínicos, que sobem rapidamente na carreira, líderes autoritários, pessoas agressivas e abusadoras, etc., estão entre eles. Uma característica comum é que eles se engajam sistematicamente em enganação e manipulação de outros para ganhos pessoais.  Os problemas maiores de relacionamento social para essas pessoas ocorrem nas áreas de conflitos no ambiente profissional, na violência doméstica (agressão e abuso em relação aos parentes mais próximos), nas dificuldades conjugais severas, e no tráfego (motoristas agressivos e abusados) .

Do ponto de vista biológico e médico, numerosos estudos realizados com sociopatas mostraram que eles possuem pouca empatia para o sofrimento dos outros (não reagem emocionalmente à punição, e não sentem nada ao verem outras pessoas sofrerem). Eles exibem um processamento anormal de aspectos emocionais da linguagem, e geralmente possuem respostas fisiológicas fraca do sistema nervoso autônomo (aumento da freqüência cardíaca e da respiração, sudorese, aumento da adrenalina, dilatação das pupilas, etc.) a imagens, palavras e situações de alto conteúdo emocional. Imagens médicas tomadas de seus cérebros mostraram que eles têm anormalidades notáveis numa região chamada córtex pré-frontal, que controla o nexo emocional das relações sociais (o que ocorre é uma espécie de "desconexão" entre o comportamento social e as emoções: são pessoas essencialmente frias).

O que fazer com as pessoas com DPA, se elas não podem ser curadas, e geralmente assumem posições de mando e liderança? Esse é um problema insolúvel. Os que infringem a lei, acabam sendo punidos repetidamente, quase nunca se reformando (para eles, então, o conceito de prisão como reformadora de comportamento não passa de uma ficção ineficaz e ridícula...). Nos EUA, a maioria dos sociopatas violentos acaba recebendo longas sentenças de prisão ou são executados. Os sociopatas não violentos se arrastam pela vida afora, causando sofrimento e perturbação, mas quase nunca acontece alguma coisa com eles. Nossa sociedade seria imensamente mais feliz e menos violenta se eles não existissem.


 

Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 3/9/1999 e 10/9/1999.

Autor: Email: renato@sabbatini.com

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