Renato Sabbatini
Recentemente,
o estimado Dr. Heraldo Curti, em sua coluna semanal no Correio Popular,
tocou em um assunto que tem fascinado as gerações de médicos
que tentam exercitar a paleomedicina, ou seja, a tentativa de diagnosticar
os males e as causas de morte de pessoas que já morreram há
muito tempo, principalmente de personalidades como Napoleão, Mozart
e outros. É um verdadeiro trabalho de Sherlock Holmes, pois o paciente
não está mais a disposição para a realização
de novos exames, e a medicina arcaica da época não tinha
os meios nem os conhecimentos para municiar os médicos atuais de
evidências suficientes.
O Dr. Curti escreveu sobre a misteriosa doença que acometeu por toda a vida adulta (mais de 50 anos) um dos mais famosos cientistas de todos os tempos, Charles Darwin, causando-lhe indizivel sofrimento, e, provavelmente, sendo a responsável indireta pelos seus rumos intelectuais e científicos, que levaram à famosa teoria da evolução. Uma das hipóteses mais prováveis é que Darwin sofria de um mal muito conhecido no Brasil: a doença de Chagas, causada por um parasita, o Tripanosoma cruzi, transmitido pela picada do "barbeiro", um inseto hematófago triatomídeo. A doença tem esse nome por ter sido descoberta por Carlos Chagas, um dos mais eminentes cientistas biomédicos brasileiros, o qual honrou o parasita com o nome de outro ícone da ciência nacional, Oswaldo Cruz. Segundo a hipótese mais corrente, Darwin teria contraído a doença ao ser picado por um "barbeiro" no Chile, quando participava da viagem de cinco anos de duração que trouxe fama mundial ao jovem naturalista, a bordo do navio HMS Beagle. O episódio da picada, e uma acurada descrição do inseto podem ser encontrados no seu diário de viagem, publicado como livro na primeira metade do século passado.
Darwin, como todo naturalista, era um excelente observador de si mesmo, e os seus cadernos de anotações e diários estão lotados de descrições dos seus sofrimentos. Em diferentes épocas de sua vida, ele sofreu numerosos sintomas, como mal estar constante, fraqueza, sensação de desmaio e morte, insônia, dores de cabeça, espasmos, tremores e convulsões musculares, incoordenação motora, calafrios, vertigens e tonturas, manchas negras e estrelas diante dos olhos, taquicardia, poliúria (urina abundante e de cor pálida), ataques violentos de náusea, vômitos freqüentes (em alguns casos se prolongando por dias ou semanas), flatulência noturna, acompanhada de zumbidos nos ouvidos, crises súbitas de eczema que cobriam toda sua cabeça, inchaços em várias partes do corpo e bolhas na pele, que arrebentavam. Também sofria de crises de depressão, forte ansiedade, choro histérico e abatimento geral, que o colocavam de cama às vezes por meses a fio, afetando totalmente sua produtividade científica e convivio com a família. "Perdi", escreveu certa vez "nos últimos 4 ou 5 meses pelo menos quatro quintos do meu tempo." Isso o deixava desesperado. No entanto, Darwin viveu muito, e morreu depois dos 80 anos, aparentemente de insuficiência cardíaca. A doença não era fatal, portanto.
Os médicos de Darwin nunca tinham visto nada igual, e foram impotentes para curá-lo. O Dr. Holland, um dos seus médicos, diagnosticou-o como tendo algo chamado "gota suprimida" (gota é uma doença causada pelo acúmulo de ácido úrico nos tecidos, causando vários problemas crônicos, como a inflamação das articulações). Similarmente à gota do pai, a de Charles Darwin parecia agir internamente, no estômago. Holland atribuía a causa a "venenos no sangue" que ativavam a uma predisposição hereditária. Mas não havia nada que ele pudesse fazer.
Em conseqüência, Darwin tentou de tudo para obter algum alívio ao longo de sua existência. A frágil e pouco científica medicina vitoriana não podia fazer muito por ele. Darwin se auto-medicava com rapé, bismuto e ópio, freqüentava estações de águas, tomando banhos gelados e açoitando-se com toalhas molhadas (isso parece ter provocado alguma melhora por uns tempos), e chegou mesmo a recorrer à curandeirismos da moda, como aplicar correntes elétricas na barriga, usando placas ligadas à uma bateria durante uma hora por dia.
A doença transformou Darwin em um semi-recluso, que se isolava em sua casa no condado de Downe, no interior da Inglaterra. Tinha fobia social (detestava reuniões com outras pessoas, ir a congressos, cidades muito movimentadas, etc.) e os sintomas se agravavam toda vez que ficava estressado. Por causa disso, uma outra linha de médicos defende que Darwin sofria de um mal que foi descoberto apenas um século depois, a síndrome do pânico. De fato, muitos dos sintomas pareciam ser psicossomáticos, desencadeados por seu grande conflito interno e medo da reação de seus amigos religiosos e conservadores se ele divulgasse o que pensava a respeito da evolução das espécies. De forma nenhuma a doença de Chagas explicaria todos os sintomas, e tãopouco o faria isoladamente a síndrome de pânico.
A polêmica aumentou o ano passado, com um intenso debate numa das melhores revistas médicas do mundo, o Journal of the American Medical Association. Um dos missivistas deu uma explicação que, ao meu ver, é uma das melhores: Darwin sofreria primariamente de doença de Meniére, uma síndrome de etiologia (causa) desconhecida, muito comum, que acomete o sistema vestibular, que regula o equilíbrio do corpo (localizado no ouvido médio). Existem vários casos relatados com doença de Meniére efetivamente diagnosticada, que tinham sintomas parecidos com o de Darwin, inclusive uma curiosa postura inclinada da cabeça, o mal-estar estomacal causado por movimentos e viagens, e até a depressão e a ansiedade, causados pelo sofrimento e mal-estar quase contínuos de um Meniére grave. O médico que aventou essa hipótese acha que Darwin contraiu-a devido a ser um caçador habitual, através de trauma acústico causado pelas explosões das armas de fogo quando jovem. No entanto, Darwin pode ter realmente adquirido a síndrome do pânico (que é de natureza fóbica), em função dos pavores causados pela síndrome de Meniére em conjunto com a vida em sociedade. Interessantemente, acredita-se que a tal da "gota suprimida" era o diagnóstico dado à síndrome de Meniére na época.
O fato é que o isolamento social auto-imposto por Darwin em seu refúgio rural foi muito importante para dar tempo e causa para longas meditações sobre a teoria da evolução, que foi publicada somente depois de um quarto de século de trabalho e hesitações. Essa possibilidade levou G. Pickering, um médico inglês, a escrever um interessante livro sobre "as doenças criativas", ou seja, como a má saúde mental e física de algumas pessoas importantes contribuíram para sua entrada na história.
Para Saber Mais
Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 8/10/99.
Autor: Email: renato@sabbatini.com