Informática Médica |
Revista Check-Up 1(6) (Jan. 1999)
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de Artigos de Informática Médica de Renato M.E. Sabbatini
Pouco mais de 100 anos depois da descoberta do primeiro método de obtenção de imagens não-invasivas do interior do corpo humano, pelo físico alemão Wilhelm Röntgen, a medicina diagnóstica está passando por uma revolução igualmente profunda e transformadora. É o aumento fenomenal nas técnicas digitais, baseadas em computador, que procuram tratar a imagem como um problema matemático complexo, e que conseguem façanhas inimagináveis na época das imagens analógicas (em filme ou fluoroscópio). Com elas, a capacidade diagnóstica, as técnicas interativas e intervencionistas, e até mesmo o nosso entendimento dinãmico da função orgânica sentiram um tremendo impacto.
Neste artigo queremos mostrar o leitor algumas dessas novas tecnologias e procedimentos, onde são usadas e como estão influenciando a medicina. Em especial, examinaremos as reconstruções tridimensionais, as imagens tomográficas funcionais e as imagens multimodais.
Na imagem digital, a área plana da imagem é dividida em milhões de minúsculos elementos discretos de imagem (retângulos luminosos, denominados pixels), formando uma espécie de grade. O pequeno tamanho do pixel, que pode assumir determinados valores de luminosidade, que variam do branco total ao preto total, proporcionalmente à intensidade dos raios X, permite a obtenção de uma imagem que o olho humano não consegue distinguir de sua correspondente analógica. Quando se tem um equipamento já digital, como é o caso do tomógrafo, essa imagem é enviada diretamente para o computador na forma de uma tabela de números (cada número correspondendo ao valor da luminosidade no pixel), e dai por diante pode ser processada por softwares especiais. Quando se tem apenas o filme ou foto, um aparelho bem conhecido, denominado "scanner" (digitalizador de imagem), pode ser usado para obter a imagem de forma digital para ser processada no computador.
Para facilitar a vida de quem quer processar computacionalmente as imagens geradas por esses aparelhos, usando softwares próprios, foi estabelecido, depois de muito debate, um padrão de arquivamento digital de imagens médicas, que se chama DICOM. Muitos fabricantes aderiram a este padrão, e seus equipamentos mais modernos produzem então imagens digitais que podem ser enviadas diretamente ao computador, seja através de uma rede de computadores, seja através da gravação de meios óticos ou magnéticos, como CD-ROM, fita, etc. Isso tem dado um grande impulso ao desenvolvimento de novos sistemas sofisticados de processamento de imagens médicas, que hoje têm até um custo bastante razoável para o médico que deseja fazê-lo.
Para que serve o 3D na medicina diagnóstica e terapêutica? A resposta, é claro, depende da modalidade de imagem. Todas as tomografias (CT, PET, SPECT e agora até o ultrassom tridimensional, com resultados espetaculares) permitem esse processamento, com ou sem contrastamento, imagem funcional (vide abaixo), etc.
Em certas imagens de medicina nuclear, por exemplo (coração e cérebro, principalmente), já se tornou rotina a reconstrução 3D, pois permite uma visão muito mais acurada e integrativa do que está acontecendo em diferentes níveis do órgão. Muitos tomógrafos já têm capacidade própria de fazer 3D, através de software embutido. As áreas que mais aproveitam esse tipo de imagem são a ortopedia (principalmente para planejamento cirúrgico, como um trabalho de tese recentemente defendido na UNICAMP e na SOBRAPAR, em Campinas, pelo cirurgião Luiz Antonio Athayde Cardoso, que usou o 3D da região orbital para cirurgias reparadoras de exoftalmia), a neurologia, (planejamento de radioterapia, radiocirurgia etc.), a angiologia (visualização de angiografias de contraste) e a neurocirurgia.
O mais recente desenvolvimento é o ultrassom em 3D, que não se pensava ser possível fazer, devido à manipulação livre do transdutor sobre o corpo do paciente. No entanto, avanços tecnológicos permitem fazer "cortes" controlados e espaçados de uma determinada região do corpo, o que dá subsídios para a reconstrução. Entre as aplicações pioneiras estão o estudo de defeitos congênitos da face e do coração no período prenatal, o planejamento tridimensional de terapias de radiação e de neurocirurgias, o cálculo preciso do desvio da articulação do quadril (luxação) em neonatos, etc.
A velha radiografia de raios X mostra imagens essencialmente anatômicas. Com a ajuda de alguns truques, como contrastes específicos, é capaz de evidenciar algumas funções básicas (por exemplo, a excreção renal, a movimentação do esôfago). Utilizando outras formas de imageamento, no entanto, conseguiu-se desenvolver sistemas capazes de mostrar em grande detalhe e de forma dinâmica o metabolismo celular, a distribuição e movimentação de substâncias endógenas, o fluxo sangüíneo, a síntese celular e muitas outras coisas. Os dois procedimentos diagnósticos mais relevantes nessa área são atualmente o PET (Positron Emission Tomography) e a ressonância magnética funcional (fMRI). Ambos são capazes de mapear, com impressionante precisão, o local de uma alteração funcional, bem como quantificá-la. Existem milhares de exemplos, que estão revolucionando muitas áreas da medicina, como a psiquiatria. Alguns deles:
O PET funciona como uma câmara tomográfica de detecção cintilográfica de radioisótopos de vida extremamente curta, como a glicose marcada com fluor radiativo. Permite detectar alterações extremamente sutís da função, antevendo em meses o surgimento de alguma anomalia detectável, como um tumor ou um foco epiléptico. Já a fMRI se fia na imagem seletiva de alguns "marcadores", elementos metabólicos ou fluxo sangüíneo cerebral que se alteram paralelamente ao aumento ou diminuição da função em um determinado ponto.
A imagem funcional é uma revolução dentro da revolução. Ela, sozinha, mostrou que tem potencial para mudar totalmente a medicina como ela é praticada hoje, principalmente se for associada à biologia molecular e celular para detectar, na forma de imagens, processos nucleares fundamentais.
Cada modalidade de imagem é capaz de mostrar um aspecto diferente da mesma região de tecido que estamos estudando. Por exemplo: o CT mostra imagem anatômica muito bem, mas é melhor para mostrar osso e cartilagem. A MRI permite obter ótimas imagens do tecido mole e de algumas funções. O PET tem pouca resolução anatômica, mas é insuperável no mapeamento funcional detalhado e sofisticado.
Surgiu então a pergunta: por que não fundí-las em uma só imagem? Ela daria todas as informações necessárias (por exemplo, mapeando com precisão uma alteração funcional detectada pelo PET em cima da anatomia detalhada do CT). Genial, mas isso é mais fácil de falar do que fazer. O problema principal é como alinhar as imagens de diferentes modalidades obtidas no mesmo individuo: os aparelhos e métodos são muito diferentes uns dos outros. Mas esse é um problema que foi enfrentado com sucesso por vários grupos e os primeiros resultados estão saindo, com um fantástico potencial diagnóstico. O truque é usar alguns marcos de referência dentro do próprio organismo e usar um software para deformar as imagens elasticamente, até fazê-las coincidir. O Dr. John Maziotta, famoso neurocirurgião da Universidade da Califórnia em Los Angeles, está fazendo um atlas do cérebro desse tipo, tirando inclusive uma "média"dos cérebros de vários indivíduos.
Em alguns centros de pesquisa avançada, o médico pode comandar à distância dois braços robóticos, que imitam à perfeição todos os seus movimentos manuais, em interação com um mundo visual tridimensional criado por essas técnicas. Assim, serão possíveis cirurgias à distância! Admirável mundo novo…
Renato
M.E. Sabbatini é doutor em ciências pela Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto da USP, e diretor do Núcleo
de Informática Biomédica da UNICAMP, em Campinas, SP.
É também diretor de informática médica da AMB,
e editor científico das revistas Informática
Médica e Intermedic.
Email: renato@sabbatini.com
Copyright 1999 Renato M.E. Sabbatini
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para fins comerciais.
Publicação na Web: 9/Jan/1999.