Informática Médica

Usando a Realidade Virtual na Medicina

Renato M.E. Sabbatini


Revista Check-Up
Veja também: Índice de Artigos de Informática Médica de Renato M.E. Sabbatini


 
Uma universidade americana estava interessada em ensinar a anatomia interna do sistema auditivo humano de uma maneira mais dinâmica e criativa para seus residentes. A idéia era que os alunos pudessem fazer um passeio virtual altamente realístico, em três dimensões, dentro do ouvido médio de um paciente real. Dessa forma, acreditavam os professores, os médicos poderiam ter um desempenho e uma segurança muito maiores em uma futura microcirurgia do ouvido, como se tivessem, por assim dizer, "reconhecido o terreno" previamente.

Nesse sentido, a tecnologia da realidade virtual veio ao seu auxílio. Primeiro, eles fizeram imagens extremamente detalhadas de todo o ouvido externo, médio e interno de um paciente real, a partir de tomografia de raios X, com cortes transversais espaçados entre si de 1.5mm. Um programa especial de computador foi em seguida utilizado para reconstruir a visão tridimensional do ouvido (denominada de volume) a partir de uma seqüência dessas imagens. Esse volume (ou reconstrução 3D, como é mais comumente chamado) pode ser visualizado na tela do computador em qualquer ângulo e ponto de perspectiva, dando uma ilusão tridimensional. Para poder visualizar em três dimensões de forma real, o usuário utiliza um par de óculos com duas lentes polaróides, que podem ficar claras ou escuras alternadamente, 30 vezes por segundo, seguindo o comando de um computador ao qual estão ligadas. O computador, por sua vez, joga na tela duas imagens ligeiramente diferentes, com a mesma velocidade de 30 por segundo, sendo que cada uma delas foi gerada como se tivesse sido vista pelo olho direito ou pelo olho esquerdo (par estereoscópico).

Sincronizando isso com os óculos polaróide, o usuário tem a nítida perceção de um verdadeiro objeto tridimensional flutuando no espaço! O componente de interatividade do usuário com a imagem é realizado com uma luva (DataGlove), que tem sensores de posição espacial da mão e dos movimentos em todos os dedos, que são transmitidos para o mesmo computador que gera a imagem, de modo que tudo o que o usuário tenta manipular tem repercussão sobre a cena digital mostrada. Por exemplo, se ele fizer o movimento com a mão de apreensão de um bisturi, ele enxerga através dos óculos 3D a imagem de sua mão reproduzindo fielmente a posição dos dedos, "segurando" a imagem de um bisturi gerado artificialmente pelo computador. Se ele fizer o movimento de incisão, o computador gerará o mesmo movimento, incidindo sobre uma pele gerada artificialmente, mostrando a abertura da fenda cirúrgica, o sangramento, etc. Se o usuário movimentar a cabeça de um lado para outro, o cenário gerado pelo computador nos óculos 3D irá realizar movimento semelhante, dando a impressão de que a pessoa está imersa em um cenário real. Daí o nome dado à tecnologia: realidade virtual. Integrando esses três periféricos e um computador razoavelmente rápido, é possível realizar atualmente projetos de realidade virtual com um orçamento não muito alto.

Operando virtualmente

As aplicações médicas da realidade virtual estão se desenvolvendo muito rapidamente nos Estados Unidos, Europa e Japão. Por exemplo, há vários anos se realiza um congresso específico para as aplicações da realidade virtual, chamado "Virtual Reality Meets Medicine" (A Realidade Virtual se Encontra com a Medicina), com a participação de centenas de pesquisadores e grupos de trabalho, no qual é demonstrada uma ampla gama de aplicações em todas as áreas médicas.

Só a leitura da lista de trabalhos apresentados nesse e em outros congressos é suficiente para nos deixar aturdidos com as possibilidades criadas por essas tecnologias. Numa das mais interessantes, o médico pode treinar cirurgias complexas e delicadas de microsuturas de vasos sangüíneos, usando um equipamento de realidade virtual que permite simular o uso de tesouras, pinças, etc., de verdade, sobre uma imagem virtual de um vaso. Eventualmente, essa aplicação poderá se transformar em uma telecirurgia, ou seja, uma cirurgia realizada a distância. Uma grande área tecnológica está se abrindo para a medicina nesse sentido: ela é chamada de robótica médica, e quando o robô cirúrgico é acionado a distância, através de uma rede ou por rádio, é chamada de telerobótica. Recentemente, um cirurgião de Milão, na Itália, operou o trato gastrointestinal de um porco em Los Angeles, nos Estados Unidos, usando um sistema de telepresença (como é chamado esse tipo de aplicação).

Em outra aplicação, o médico que está realizando uma avaliação ultra-sonográfica de um feto, vê com os óculos 3D uma imagem de ultra-som superposta sobre o corpo da mãe, o que permite um relacionamento topográfico preciso do feto e dos anexos em relação ao abdômen. Em outra, ainda, uma platéia cheia de pessoas usando óculos 3D assiste a um neurocientista (real, não virtual) no palco, tocar um apontador em um ponto de uma imagem virtual gigantesca de um neurônio cerebelar e visualiza um potencial de ação percorrer toda a célula.

Diagnóstico e terapia

Outras aplicações interessantes da realidade virtual têm ocorrido nas áreas de diagnóstico e terapia. Por exemplo, na Universidade Washington, onde existe um importante centro de pesquisa tecnológica sobre o tema, o pesquisador Erik Viirre desenvolveu um ambiente virtual usado para estimular o aparelho vestibular dos pacientes em várias situações de alteração do equilíbrio e diagnosticar as causas de náusea provocada por movimentos; bem como a efetividade de sua terapia por medicamentos. O ambiente virtual permite testar exaustivamente o paciente em uma variedade de situações que somente ocorreriam na vida real, e achar qual a dosagem e tipo de terapia que mais funcionam para aquele paciente.
Falando de vertigem, outra aplicação muito eficaz e benéfica da realidade virtual já entrou na fase de comercialização e uso mais extenso: o tratamento de fobias, como acrofobia, claustrofobia e agorafobia, colocando o paciente em cenários virtuais controlados. Por exemplo, quando o paciente tem medo de alturas, ele é submetido a um treino gradual de dessensitização, onde ele começa primeiro entrando em um elevador simulado em realidade virtual (daqueles que têm janelas de vidro), indo a alturas gradativamente maiores. Em sessões subseqüentes, o paciente é instado a "sair" do elevador no terraço do alto de um edifício, etc.; tudo simulado com grande realismo, até que, finalmente, o paciente fique em um local aberto (uma viga solta no espaço!). A acrofobia literalmente desaparece!

Em outro centro famoso dos Estados Unidos, em Baltimore, pesquisadores que trabalham com crianças autistas obtiveram um sucesso extraordinário em penetrar no mundo fechado desses pacientes, colocando-os em ambientes virtuais onde todos os seres "vivos" tinham formatos de objetos não ameaçadores, sem olhos. Depois, gradativamente, à medida que a criança se acostumava, foram substituindo os cenários e os objetos por imagens de seres humanos. Em São Paulo existe um grupo de psicólogos que trabalha com realidade virtual na abordagem terapêutica com crianças. Usando um personagem virtual, criado pelo acoplamento de um computador a detectores de expressão facial e movimentação de um ator situado a distância, eles interagiram com crianças internadas em UTI para melhorar o progresso terapêutico.

No ensino

Uma área de aplicação bastante óbvia e imediata para a realidade virtual na medicina é a educacional. De fato, muitos laboratórios americanos, europeus e japoneses iniciaram suas linhas de pesquisa, de valor inconteste, nessa área. O laboratório da Universidade Washington, já mencionado, dirigido pela Dra. Suzanne Weghorst, foi um dos pioneiros, ao desenvolver um modelo osteomuscular do membro inferior, que pode ser manuseado pelos alunos em um ambiente de realidade virtual. O objetivo é aprender anatomia funcional tridimensional.

Existe um enorme potencial para o uso da realidade virtual em muitas áreas do ensino médico, particularmente na simulação de cirurgias e em passeios virtuais através do organismo. Uma base de imagens seccionais dos corpos de um homem e de uma mulher, chamada de Visible Human Database, foi produzida pela National Library of Medicine nos Estados Unidos, e é um recurso importante para o desenvolvimento de projetos de ensino usando estruturas anatômicas virtuais. No Brasil, o site do VHD é localizado no Núcleo de Informática Biomédica da Unicamp. A base contém 19.000 imagens de cortes de congelamento dos cadáveres, de 1 em 1mm (no homem) ou de 0.3mm (na mulher), e de tomografias de raios X, tomadas nos mesmos níveis que os cortes anatômicos. Também existem tomografias de ressonância magnética em vários níveis e planos de orientação, permitindo pela primeira vez a montagem de cursos virtuais de anatomia radiológica de altíssima resolução.

Evolução sofisticada

Está ocorrendo uma grande evolução nos dispositivos utilizados para implementar projetos de realidade virtual, a qual, eventualmente, servirá para popularizar essa tecnologia em muitos domínios da medicina ainda restritos pela novidade, complexidade e alto custo.

Um deles, lançado recentemente pela empresa Phillips, é um monitor de vídeo que é capaz de mostrar imagens em 3D real (não perspectiva), sem necessidade de utilizar óculos especiais. Isso é conseguido por um sistema de microprismas e projeção espacial, a partir de estereopares de imagens geradas pelo computador. Outro recurso impressionante é o Cube (cubo), que é um quarto onde o usuário entra, e no qual todas as paredes são telas inteiras de projeção. O computador gera imagens tridimensionais e as projeta nas paredes, dando a impressão de uma imersão total.

Um elemento importante da "experiência virtual" em uma cirurgia, por exemplo, é a informação sensorial proveniente do contato do instrumento cirúrgico com o objeto de manipulação cirúrgica. Assim foram desenvolvidos periféricos especiais (atuadores efápticos), que se movem ligeiramente e pressionam os dedos e a mão do usuário, quando o computador detecta um "contato virtual". Por exemplo, ao tentar cortar com o bisturi uma fáscia resistente, o usuário "sente" essa resistência no instrumento preso à DataGlove.

No futuro, um número cada vez maior de aplicações de realidade virtual será feito através da Internet. Já existe um padrão de visualização de realidade virtual através da Web, chamado de VRML (Virtual Reality Modeling Language), e que permite a navegação por ambientes virtuais tridimensionais. Com o aparecimento de microcomputadores cada vez mais rápidos e potentes, podemos prever que a realidade virtual será um recurso corriqueiro da Internet dentro de alguns anos.
Quem se interessar pelo assunto, pode achar muita coisa na Internet sobre realidade virtual, inclusive como montar uma estação "caseira" de realidade virtual, baseada em periféricos para videogames, como a luva digital da Nintendo e os óculos tridimensionais da Sega.
 
Endereços na Internet

Emerson, T. - Information Resources in Virtual Reality 
http://www.hitl.washington.edu/prejects/knowledge_base/ivrv/ 

Viirre, E. - A Survey of Medical Issues and Virtual Reality Technology
http://www.hitl.washington.edu/projects/vestibular/article.html 

FZ Karlsruhe - The KISMET simulation homepage Karlsruhe Endoscopic Surgery Trainer
http://iregt1.iai.fzk.de/TRAINER/mic_trainer1.html 

Morten Bro-Nielsen - Surgery simulation
http://www.imm.dtu.dk/~bro/simudef.html 

Medical Applications of Robotics
http://www.robotic.dlr.de/MEDICINE/index.html 

Projeto Ser Humano Visível
http://www.vhd.org.b

NASA Ames Bioinformatics Center: Tools for Virtual Surgery 
http://biocomp.arc.nasa.gov/cutter/ 

Renato M.E. Sabbatini é doutor em ciências pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, e diretor associado do Núcleo de Informática Biomédica da UNICAMP, em Campinas, SP. É também editor científico das revistas Informática Médica e Intermedic.
Email: renato@sabbatini.com

Copyright 2001 Renato M.E. Sabbatini
Todos os direitos reservados. Proibida a cópia para fins comerciais.

Publicação na Web:

URL: http://www.sabbatini.com/renato/papers/checkup-04.html