Informática Médica 

Ética e qualidade de informação médica na Internet

Renato M.E. Sabbatini


Revista Check-Up
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As informações médicas que se encontram na Internet são confiáveis? Os sites de saúde têm uma postura ética em relação à confidencialidade dos dados de quem os consulta?

Claro que não. A essa altura, até uma criança sabe que a grande rede está adquirindo a fama de ser um repositório sem qualquer tipo de controle de qualidade. Ao se fazer uma pesquisa por palavras em um mecanismo de busca qualquer, a lista resultante pode conter de tudo, desde um artigo científico escrito pela maior e mais respeitada autoridade médica naquele assunto, até receitas esotéricas de medicamentos que se pode comprar livremente pela Internet, ou fraudes inqualificáveis. O pior é que na área da saúde, como dificilmente o usuário comum entende do assunto como um especialista, ele não tem elementos para separar o joio do trigo. A escolha é difícil, e, muitas vezes, perigosa, como é o caso da informação sobre saúde.

Mas nem sempre foi assim. Quando a Internet e a WWW surgiram, a maioria dos usuários era formada por cientistas e estudantes, e a rede tinha sido concebida como uma nova maneira de intercambiar dados científicos, "papers", etc., bem como para facilitar a comunicação profissional. Vale lembrar, por exemplo, que até setembro de 1995 (quando o Comitê Gestor de Informática da Internet brasileira liberou-a para o acesso comercial via Embratel), ela tinha apenas 50 mil usuários, quase todos eles em universidades e centros de pesquisas. Seis anos depois, temos 12 milhões de usuários, e os motivos originais de criação da Internet se perderam no ciberespaço… Graças ao hipertexto e aos provedores de sites gratuitos, hoje tornou-se tão fácil e barato publicar informação na Internet, que nos EUA praticamente 20% dos usuários já colocaram alguma coisa de sua autoria na rede.

Essa sim, é uma verdadeira revolução. Qualquer um pode ser autor, mas isso significa também que o nível de bobagem, lixo e inutilidades aumenta na rede à razão de centenas de milhares de páginas por dia. Desse ponto de vista, não há nada de novo: falta de ética, crime por correspondência (chamado nos EUA de “postal fraud”, sendo um crime federal com severas punições), e distribuição maciça de lixo impresso por correio são coisas que existem há muito tempo.

O que a Internet adiciona de novo a isso é a facilidade e os custos baixos com que isso tudo pode ser feito, literalmente por qualquer garoto com um PC 486 e um modem de 28K, e em qualquer lugar do mundo. Para distribuir 20 milhões de folhetos coloridos pelo correio, você precisa ter um orçamento milionário (a America On-Line fez isso nos EUA quando foi lançada, com um agravante: distribuiu esse número de disquetes, encartados em revistas, e posteriormente fez o mesmo com CD-ROMs.). Para fazer a mesma coisa hoje, basta comprar uma mala direta de email, por uns poucos trocados (menos de 500 dólares para o número acima) e disparar automaticamente. Vai levar dias, mas funciona.

Outra facilidade muito grande, proporcionada pela Web e pelos serviços de hospedagem gratuita de sites, é a autopublicação. No mundo real das revistas e jornais médicos impressos, é muito, muito difícil uma pessoa qualquer ter acesso como autor a uma publicação de boa qualidade. Precisa passar por um rigoroso sistema de triagem, em que outros médicos e cientistas eminentes examinam o trabalho e decidem se ele tem qualidade para ser publicado. Quanto maior essa qualidade, aliás, maior a taxa de rejeição de artigos. Existe, portanto, todo um sistema de controle de qualidade, que a Web simplesmente não tem (e nunca vai ter).

Certificando a qualidade

Nessa confusão toda, que evidentemente não admite mais nenhuma forma de controle, filtro, canal ou sistema de garantia de qualidade, o usuário à procura de informação sobre saúde que seja séria e dotada de autoridade sai perdendo tremendamente. Os liberais da Internet propugnam a existência de mecanismos voluntários de "rating", ou seja, de atribuição de notas ou chancelas de qualidade, feitas por alguma entidade confiável. Por exemplo: recentemente a Fundação Vanzolini, da USP, começou a atribuir selos de defesa da privacidade a sites de comércio eletrônicos. Isso funciona assim: fixa-se um determinado número de critérios, e um avaliador verifica se um site obedece a todos. Em caso positivo, ele tem o direito de usar o selo (e pagar por ele…), o que teoricamente o torna um site confiável daquele ponto de vista.

Mas, para que isso funcione, os usuários precisam saber da existência do selo, quem o atribue, e quais são os seus critérios. Esse é que é o grande problema dos selos: a existência de vários, um para cada área do saber, só causa confusão. É o que veremos na continuação desta coluna, na semana que vem.

Resta, então, a esperança nos sistemas de avaliação da qualidade, através de chancelas concedidas por órgãos sociais de reconhecido prestígio. Na área da saúde, por exemplo, a Health on the Net Foundation (www.hon.ch), uma fundação suiça baseda em Genebra, criou um código de conduta aplicável aos “sites” para leigos e profissionais. São alguns “mandamentos” que devem ser seguidos pelos mesmos, como identificar claramente a fonte de financiamento e os potenciais conflitos de interesse (por exemplo, um artigo altamente favorável sobre um determinado medicamento ter sido patrocinado pelo laboratório farmacêutico que o fabrica com exclusividade...), controlar o embasamento científico dos fatos publicados, ter profissionais qualificados responsáveis pela autoria e aconselhamento, etc. É um exemplo interessante de autoregulação, e é adotado por milhares de sites de saúde em todo o mundo. Uma iniciativa semelhante foi feita no Brasil pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, que publicou um manual de ética para sites (www.cremesp.org.br).

Nada disso tem sentido, entretanto, se o público consumidor não conhecer e valorizar as chancelas de autoregulação. A única alternativa disponível seria a censura, mas isso, evidentemente é impossível na Internet.

Comércio eletrônico e privacidade

À medida em que o comércio eletrônico explode em volume na Web, aumentam também as preocupações com a privacidade dos internautas que acessam sites de todos os tipos. Essa preocupação é particularmente séria nos sites de saúde, pois muitas vezes são coletados dados confidenciais, de natureza médica, dos pacientes. Existem sites médicos que implementam prontuários eletrônicos on-line, em que o próprio paciente ou seu médico podem digitar informações sobre doenças, medicamentos ativos, etc.

Existem também cada vez mais sites dedicados ao comércio eletrônico (e-commerce). Para efetuar o processo de venda, são naturalmente colhidos muitos dados do consumidor, inclusive cartão de crédito, o que deixa muita gente preocupada com a possibilidade desse número ser roubado ou clonado. Isso já aconteceu, não é impossível, embora seja bem difícil. Mas isso não é o pior. Atualmente existem também tecnologias que podem montar automaticamente um perfil altamente detalhado dos interesses de uma pessoa, enquanto ela navega em lojas on-line ou clica em "banners" (tiras de anúncios) em sites ou revistas eletrônicas na Web. Depois de um certo tempo, esse perfil é bastante sofisticado e completo, e pode ser usado para muitas coisas: ele pode ser vendido, por exemplo, para empresas que buscam informações sobre o comportamento de usuários, tais como as coisas que eles mais compram, ou os sites que mais visitam, ou as informações que mais procuram. Conhecendo o perfil, o sistema pode escolher colocar dinamicamente na página que ele está visitando um anúncio de maior interesse para ele. Por exemplo, se a empresa sabe que o usuário costuma visitar artigos sobre tratamento de asma, a próxima vez que ele entrar em um desses sites, irá visualizar um anúncio de um novo medicamento para asma, provocando, então (segundo a teoria), um maior desejo de clicar nesse anúncio. Isso também é chamado de "contextual merchandising" (ou anúncio de comercialização ligado ao contexto). Agora, imaginem o perigo para a saúde dos cidadãos se isso é mal utilizado. Pode, inclusive, levar a uma maior automedicação.

A Internet permite novas e criativas formas de propaganda, mas é necessário alguma restrição de natureza ética, aliada ao bom senso, para que os usuários não tenham a sua privacidade totalmente escancarada, Na área da saúde, isso é o óbvio, e o Ministério da Saúde precisa se preocupar com isso, sabendo como punir os casos flagrantes de abuso.A ausência de diretivas morais e legais é rampante entre os sites de comércio eletrônico. Um levantamento recente feito pela Federal Trade Commission, órgão do governo americano que regulamenta as atividades comerciais naquele pais, descobriu que apenas 8% dos sites de comércio eletrônico têm um "selo de privacidade", ou seja, alguma política, claramente visível, de que os usuários daquele site têm garantia de privacidade.A FTC deseja que os sites tenham quatro normas básicas: aviso, escolha, acesso e segurança. Em outras palavras, o site deve avisar claramente ao usuário qual informação está sendo coletada sobre ele, e como é usada; dar opção para que ele escolha como a informação será usada, dar acesso às informações já coletadas sobre ele, para fins de verificação, correção e apagamento, e tomar as medidas necessárias para proteger os dados de acesso por terceiros. No levantamento realizado nos EUA, apenas 20% dos sites de comércio eletrônico com mais de 40 mil visitantes por dia tinham implementando essas quatro políticas de privacidade.

Como conclusão de um estudo de 208 páginas sobre práticas de privacidade na Net, a poderosa FTC concluiu que o governo deve implementar exigências legais de proteção, pois a indústria falhou em regulamentar a si própria de maneira independente, como os líderes empresariais do setor desejam.

A controvérsia se instalou. A Aliança de Privacidade na Internet, um grupo que defende a ausência de quaisquer barreiras ou legislação que tente domar o vale-tudo da Internet, é contra. "Achamos que os consumidores bem informados devem decidir que nível de privacidade preferem. Eles podem disciplinar o mercado para que ele forneça a proteção de privacidade que exigem e merecem. As recomendações da FTC são muito amplas, prematuras, pouco práticas e desnecessárias". Já os consumidores pensam diferente. De acordo com um relatório de outubro de 1999 da empresa Forrester, 90% dos consumidores querem controlar como a informação coletada sobre eles é coletada e usada por terceiros, 57% favorecem leis destinadas à proteção da privacidade on-line, e 56% não permitiriam a coleta, se a eles fosse dada a escolha.

Na minha opinião, é indubitável que as atividades comerciais na Internet não devem ficar imunes à legislação de proteção do consumidor, em geral, e que novas leis de proteção da privacidade no novo ambiente virtual devem ser estudadas e editadas pelo governo. No Brasil, essa discussão ainda está extremamente atrasada. Se não fosse a regulamentação governamental, estaríamos completamente desprotegidos perante a ganância e a irresponsabilidade das empresas em coisas que vão desde a qualidade sanitária da carne e dos medicamentos, até a proteção dos recursos naturais. Segundo um influente colunista americano, a coisa pode ficar perigosa se nada for feito. Ele escreveu:

"O livre exercício do comércio na Internet esmagará todas as barreiras de privacidade que pensamos ter. Isso é inevitável, pois auto-interesse e dinheiro estão envolvidos. Eu quero que meu governo exerça seu imenso poder para me salvar de atos de negação da minha privacidade por parte de ficções jurídicas amorais. Este é o trabalho do governo. Simplesmente não existe ninguém mais para fazê-lo."

É irreal achar que a Internet vai continuar livre como está.

 
Endereços na Internet

Renato M.E. Sabbatini é doutor em ciências pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, e fundador e diretor do Núcleo de Informática Biomédica da UNICAMP, em Campinas, SP. É também editor científico das revistas Informática Médica e Intermedic.
Email: renato@sabbatini.com

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