Informática Prática |
Revista Médico Repórter 6: 20-22, Junho 1999.
Veja também: Índice de Artigos de Informática Médica de Renato M.E. Sabbatini
O prontuário médico unificado é uma das grandes conquistas da medicina neste século. Seria impossível pensar em um hospital que não tivesse o seu Serviço de Arquivo Médico, onde ficam os prontuários de todos os pacientes. A medicina multidisciplinar simplesmente não existiria, assim como a comunicação entre os vários profissionais, especialistas e serviços que atendem ao paciente durante a sua vida em um hospital.
No entanto, esse sistema universalmente adotado tem algumas falhas graves. A mais importante delas é que ele não é verdadeiramente unificado, pois ao longo da vida um paciente consulta muitos médicos, faz muitos exames, e é internado em muitos hospitais. Portanto, seu prontuário está literalmente "espalhado" por muitos lugares, gerando um enorme desperdício, a necessidade de reescrever informações, sem falar nos exames e anamneses que precisam ser refeitas ou repetidas inúmeras vezes.
Um prontuário verdadeiramente unificado seria aquele que ficasse com o paciente, que é a única coisa que existe em comum entre todos esses atendimentos. Ao procurar atendimento, ele levaria seu prontuário consigo, que seria consultado e atualizado pelos provedores de serviços médicos. Mas isso seria muito complicado de se implementar, tanto assim que nenhuma iniciativa nesse sentido obteve sucesso.
Com as modernas tecnologias de informação, no entanto, o prontuário unificado pode se tornar uma realidade, de uma maneira muito mais simples e eficiente. Duas soluções são possíveis: a primeira é utilizar redes de computadores, como a Internet. O prontuário eletrônico fica disponível em um único local (servidor), e todos os provedores de serviços de saúde que são credenciados para atender aquele paciente têm acesso ao prontuário através da rede, podendo consultá-lo e de atualizar informações. A segunda solução é o "cartão inteligente" ("smart card"), do tamanho de um cartão de crédito, e que tem um circuito integrado de memória. Nas versões mais modernas é possível armazenar centenas ou milhares de informações médicas do paciente em um espaço diminuto. O cartão fica sempre com o paci
previsão para o ano 2000 é de 400 milhões, com um crescimento anual da ordem de 36%). No Brasil ainda é uma novidade, em estágio de pesquisa ou de consideração por muitos planos de saúde.
Existem dois tipos básicos de cartões inteligentes em uso: o cartão de memória e o cartão de microprocessador. Ambos são do tamanho de um cartão de crédito comum, feitos de plástico, e contém um chip (circuito integrado ultraminiaturizado) embutido em seu interior. Para poder usar o cartão é necessária uma unidade de leitura/gravação, ligada ou não a um computador, onde se insere o cartão. Contatos elétricos dourados na superfície de um dos lados do cartão fazem a conexão. Existem também cartões dotados de um pequeno transmissor de rádio e de uma antena, que se comunicam à distância, sem necessidade de contato. O cartão de memória geralmente tem entre 2 a 64 kbits (correspondentes a 300 a 8.000 caracteres de informação). Os cartões de microprocessador contém um chip capaz de armazenar e executar programas (software), além de terem memória, também. No Brasil a primeira aplicação de cartões inteligentes se deu na área bancária, com o Visa Cash e o Visa Electron, que são "carteiras de dinheiro eletrônicas".
Cartão inteligente de contato. O módulo de contato está na superfície do cartão e tem contatos metálicos que se encaixam no leitor. | Cartão inteligente sem contato. A transferência de dados se dá por radiofreqüência através de uma antena embutida no cartão. |
Uma das aplicações mais utilizadas do cartão inteligente em saúde ocorre na área administrativa e operacional, mais especificamente em conjunto com o seguro-saúde e os planos pré-pagos de assistência médica (os famosos convênios). O cartão inteligente pode ser usado no consultório do médico, na clínica, hospital ou laboratório para verificar o plano de saúde e tipo de cobertura do paciente ou dependente quando ele se apresenta para a consulta ou internação. Atualmente, devido ao grande número de convênios medico-hospitalares e complexidade nas regras de atendimento, essa atividade demora muito tempo, gera muitos erros e glosas, e pode levar a conflitos sérios entre os pacientes, a clínica e a empresa de plano de saúde ou seguro médico.
Para utilizar o cartão inteligente, um perfil detalhado do contrato é armazenado em sua memória, com dados sobre tipo de cobertura, franquias, reembolsos, deduções, tipos de pre-autorizações nece ões e efetuando deduções de cotas.
Um sistema misto on-line (acesso via rede) e off-line (cartão lido por microcomputador no atendimento), permite aumentar muito determinadas capacidades de um sistema baseado no cartão inteligente. Por exemplo, ele pode ser usado para autorizar automaticamente, a partir do consultório, clínica ou hospital, o pagamento eletrônico via Internet dos serviços prestados naquele momento (fatura médico-hospitalar). Isso é feito da seguinte maneira: o computador da recepção lê a informação sobre o paciente e seu plano de saúde diretamente no cartão inteligente, e entra em contato via Internet com o banco conveniado, autorizando o depósito da quantia estipulada. Esse procedimento elimina erros, fraudes e necessidade de redigitação, aumentando a velocidade para o paciente, para o médico, laboratório ou hospital, bem como para seguradora (que economiza muito dinheiro com digitadores, que não são mais necessários).
Em um hospital, o cartão inteligente também agiliza os procedimentos de admissão e alta. A seguradora e o médico tem melhores funções de gerenciamento da base de dados (tais como listas negras de inadimplentes ou roubos de cartões, gerenciamento de custo, demanda e risco, etc.). O papel é eliminado em várias fases do processo, assim como a necessidade de preencher formulários. Finalmente, há também um aumento na satisfação do paciente e na qualidade da atenção.
Todas essas aplicações administrativas são muito interessantes, mas utilizam pouco do fantástico potencial do cartão inteligente. A aplicação realmente revolucionária é o que podemos chamar de "prontuário médico de bolso". O cartão inteligente, principalmente os de maior capacidade, pode ser usado para armazenar informações sobre o registro médico individual, incluindo: identificação pessoal, dados de emergência, tipos sanguíneos, vacinações, alergias, histórico resumido de hospitalizações, atendimentos, diagnósticos e tratamentos, medicamentos ativos, médicos e clínicas que o atenderam, doenças crônicas, informações específicas para o paciente etc. O cartão também pode conter apontadores para registros e imagens disponíveis sobre o paciente, em sistemas on-line como a Internet.
Um exemplo de aplicação seria o seguinte: ao se tornar associado de um plano de saúde, o paciente preenche um detalhado formulário de levantamento de seu histórico médico passado e atual, juntamente com um médico. Essa informação é digitada no computador e gravada em um cartão inteligente, que é então dado ao paciente. Toda vez que ele vai fazer uma consulta, exame ou internação, ele apresenta o cartão, que dá acesso a todos os dados registrados. Se a consulta ou o atendimento gerarem dados importantes, o cartão já é atualizado no próprio equipamento do médico.
A consulta e a atualização do cartão é feita a e elimina a necessidade de preencher formulários, dimuindo também os erros de preenchimento e a necessidade de redigitar informações sucessivas vezes.
Como colocar toda essa informação em um espaço restrito de memória no cartão inteligente? Um dos conceitos muito utilizados atualmente é o de conjunto mínimo de dados, ou MDS (Minimal Data Set). Os usuários definem quais serão as informações importantes a serem codificadas, ou seja, as mais prioritárias. Para aproveitar-se bem o espaço, é comum também fazer-se amplo uso de codificação dos dados (por exemplo, usando a Classificação Internacional de Doenças (CID) ou outrasm, como o SNOMED, para patologia, o UMLS, etc.). Desta forma um cartão com capacidade de 64 kb (aproximadamente 8 mil caracteres) pode conter mais de 3.000 informações médicas individuais!
Já existem países (na Europa, principalmente) em que os serviços públicos de saúde implementaram com sucesso sistemas baseados em cartões inteligentes. O maior usuário de cartões inteligentes do mundo é a França. Lá existem "smart cards" para tudo (metrô, bancos, telefones, clubes, etc.), inclusive para o setor saúde. Em outros, como nos EUA, os cartões inteligentes estão sendo usados por seguradoras médicas e planos de saúde.
Quem vai ganhar essa "guerra" tecnológica, as redes de computadores ou os cartões inteligentes? Existe uma tendência clara de convergência e de sinergia entre as duas soluções, é claro, mas os fatores de decisão serão preço, conveniência e facilidade de uso, capacidade e disseminação das unidades de leitura e softwares específicos por toda a comunidade médica. A solução via rede tem um sério problema de temor quanto à segurança e confidencialidade dos dados. A infraestrutura também é onerosa, mas com o espalhamento da Internet por todos os lados, este tende a ser um problema em desaparecimento. O cartão inteligente tem problemas de pequena capacidade, dificuldade de atualização e perda freqüente pelo paciente. Como todo sistema de saúde, seja ele público ou privado, precisa mesmo emitir cartões de identificação para seus clientes, pode parecer a melhor idéia gastar um pouco mais e já dar um registro médico eletrônico embutido no mesmo.
O cartão inteligente está apenas em sua infância. Já existem cartões com capacidade de memória muito maior, como os "laser cards", que contém uma superfície espelhada no verso, com funcionamento igual a um CD, e que permitem armazenar até 200 megabits de informação. Isso permite armazenar praticamente toda a vida médica de uma pessoa, inclusive examens de imagens, traçados de ECG, etc.