Informática Médica

 

O Comércio On-Line Chega à Medicina

Renato M.E. Sabbatini


Revista Médico Repórter 8 Outubro 1999)
Veja também: Índice de Artigos de Informática Médica de Renato M.E. Sabbatini


A próxima revolução no setor saúde está começando a acontecer: o comércio eletrônico de produtos e serviços através da Internet. Essa tendência foi assinalada nos últimos meses nos EUA, onde uma série de empresas baseadas exclusivamente na Internet conseguiram grandes investimentos financeiros, entre elas três empresas voltadas à disseminação de informações médicas para leigos e profissionais (DrKoop, WebMD e Mediconsult) e algumas lojas virtuais de medicamentos com e sem receita (Drugstore.com, PlanetRX, Healthshop e MotherNature). A expectativa dos investidores e do mercado de ações não é pequena, porque o mercado será muito grande no futuro: algo como US$ 1,7 bilhões em 2003, somente nos EUA.

As farmácias on-line serão as principais empresas de vendas on-line no setor saúde, mas inicialmente elas concentrarão seus esforços nos medicamentos sem receita (chamados de OTC, ou over-the-counter), vitaminas, suplementos alimentares, etc.. O motivo é simples: os medicamentos com receita representam o maior segmento do mercado de saúde nos EUA, com um valor total que excede os 100 bilhões de dólares por ano. No entanto, cerca de metade dessas despesas é realizada por pacientes com condições agudas, que não podem esperar por uma compra feita através da Internet, e que, atualmente, precisa ser despachada. Outro problema é a legislação, que em muitos estados e países exige que seja apresentada fisicamente a receita do médico antes que a venda possa ser liberada. As vendas de OTCs, principalmente as vitaminas e suplementos alimentares estão crescendo à taxa de 230% ao ano, e devem atingir cerca de US$ 300 milhões em 2003.

Uma solução para o primeiro problema é aliar as farmácias on-line às cadeias de farmácias com lojas físicas. A encomenda é feita pela Internet, mas a entrega é realizada rapidamente em casa pela farmácia mais próxima, ou o paciente vai buscar. O problema legal também é resolvido, pois a entrega é local (geralmente na mesma cidade), contra apresentação da receita, se for o caso. Para as doenças crônicas, a entrega pode ser feita pelo correio, também. É o caso de uma das maiores empresas de seguros médicos dos EUA, a Merck-Medco, que recentemente fec line seu perfil medicamentoso, e com um simples clique do mouse solicitar o reenvio dos medicamentos que toma, através de uma receita de repetição depositada na farmácia. É tão fácil comprar assim, que a Internet será uma grande atração para os usuários, principalmente por causa da economia de custos, tanto para os usuários quanto para os fornecedores. Estima-se que as mercadorias vendidas hoje através da Internet tenham preços médios cerca de 9 a 16% mais baixos do que as mesmas mercadorias disponíveis em lojas físicas. Sem contar, evidentemente, com a comodidade de se pagar com um cartão de crédito e receber em casa os medicamentos. Para os fornecedores, a previsão de grandes volumes de venda, e o fato de ser desnecessário fazer grandes estoques, que podem encalhar e perder a validade, são grandes atrativos para fazer vendas on-line.
 

Como Funciona o E-Commerce

Quem já comprou alguma coisa através da Internet sabe como funciona, mas vale a pena explicar aqui. Inicialmente, a empresa que quer vender produtos através da grande rede precisa ter um "site" ou "home page" (por exemplo, visite a Healthshop ou a MotherNature para ter uma idéia). No computador onde fica abrigado esse "site", existe um catálogo on-line dos produtos à venda, com descrições ou preços, ou seja um banco de dados ligado à Web. O consumidor pode procurar o produto que deseja de diversas maneiras: uma delas é digitar uma ou mais palavras que o identifiquem (por exemplo: vitamina C) em um formulário de busca. Outra é navegar através do catálogo, buscando por subcategorias (por exemplo: OTC/vitaminas e suplementos/vitamina C). Ao chegar à categoria ou medicamento desejado, o "site" gera instantaneamente uma página contendo todas as ofertas disponíveis no catálogo. O usuário pode, inclusive, ver uma foto do vidrinho ou embalagem, ler a bula resumida ou completa on-line, e até acessar algum artigo sobre aquele medicamento, disponibilizado e apontado ("link") pelo catálogo, antes de se decidir. Pode também comparar preços de várias marcas, similares ou genéricos e ficar sabendo de ofertas especiais e descontos. Tendo decidido o que deseja comprar, clica com o mouse sobre a caixinha de seleção do medicamento e ele é "colocado" dentro de seu carrinho de compras virtual. Depois de comprar mais mercadorias dessa forma, se for o caso, o usuário pode finalizar a compra, e "ir para o caixa", por assim dizer. O total é calculado pelo software, e a opção de método de entrega (expressa, normal, etc.), depois de selecionada, é adicionada à conta. O cliente fornece o número de seu cartão de crédito, e pronto. A compra está feita e será despachada dentro de algumas horas,

Diversos recursos permitem incrementar e melhorar a experiência de compras on-line. Por exemplo, para não ter que ficar digitando toda hora o número do cartão de crédito e o endereço de entrega, o cliente pode "abrir uma conta" virtual, onde esses dados são registrados apenas uma vez, e ficam protegidos de forma mais segura. Muita gente tem medo de colocar seus números de cartão de crédito nessa situação, mas geralmente isso é bem mais seguro do que, por exemplo, dar seu cartão para o balconista de uma farmácia real (como é que você sabe que ele não xerocou seu cartão, ou ficou com a cóp está no vermelho (é o caso da Amazon, que fatura mais de 500 milhões de dólares, mas nunca deu um centavo de lucro desde a sua fundação, cinco anos atrás). Esse segmento (que os especialistas chamam de B-to-C, ou "business to consumer") ainda precisa muitos investimentos para se consolidar, e na área da saúde provavelmente vai crescer mais devagar que em outras áreas do comércio (além de ser mais restrita a oferta de produtos: as maiores indústrias farmacêuticas não chegam a ter 100 medicamentos diferentes em suas linhas).

No Brasil, o comércio eletrônico B-to-C ainda é incipiente. Na área da saúde existem algumas farmácias virtuais que vendem através da Internet, mas em uma escala modesta. Espera-se para breve, no entanto, a entrada de alguns portais montados por empresas americanas, que pretendem agressivamente promover essa modalidade.
 

Vendendo Informação

Os empreendimentos de mais risco na Internet médica são os "sites" de venda de informação, tanto para leigos quanto para profissionais. Ainda predomina na Internet a filosofia da informação gratuita. Assim, os sites para leigos montados por empresas, como WebMD, InteliHealth, MayoHealth, Mediconsult, DrKoop, Healthcentral, etc., não costumam cobrar por ela, derivando seus ganhos através de outros modelos, como a venda de propaganda.

Esses sites oferecem uma grande variedade de serviços de informação, que notícias sobre saúde na imprensa leiga, uma enciclopédia de doenças e tratamentos, base de dados sobre medicamentos, serviços de perguntas e respostas para especialistas, auto-testes de condições de saúde, "chats" (bate-papos), listas de discussão sobre determinados temas. Eles são denominados de "portais". Um portal é uma espécie de supermercado de informação, com um menu amplo, geralmente todo oferecido na primeira página. O usuário pode se registrar e receber automaticamente em seu correio eletrônico as novidades do dia ou da semana. As empresas de portais de saúde falam também em "fidelizar" o usuário, ou seja, apresentar atrativos e serviços suficientes para fazê-lo voltar sempre que necessitar, e isso inclui personalizar o "site". A personalização pode ser modesta, como simplesmente registrar os assuntos de seu interesse, ou sofisticada, que poucos "sites" têm, como poder colocar seu prontuário médico on-line.

Embora os portais de saúde tenham poucas fontes de renda (geralmente através de publicidade e patrocínios, mas também por meio de venda de produtos on-line), eles têm atraído grande volume de investimentos. Para se ter uma idéia, recentemente a poderosa Microsoft investiu cerca de 250 milhões de dólares em uma empresa de informações médicas, a Healtheon, que tinha comprado a WebMD. A Microsoft pretende usar o dinheiro na forma de US$ 150 milhões no pagamento de assinaturas de médicos no site e US$ 100 milhões em patrocínios e propaganda em outros "sites" nos próximos cinco anos.

Os "sites" de informação para leigos estão no vermelho ainda mais do que os de comércio eletrônico. Um exemplo é um dos mais famosos, o DrKoop, que rapidíssimo no valor das ações, que foram tomadas rapidamente por compradores interessados em ganhar muito dinheiro. Como resultado, o Dr. Koop ficou quase 40 milhões de dólares mais rico. No entanto, o "site" faturou em um ano apenas 455 mil dólares, com despesas de 22 milhões de dólares (!!). Está no vermelhíssimo, portanto, mas os investidores não estão se importando muito com isso, aparentemente, pois a coisa é de futuro (cerca de 40% dos internautas procuram informações sobre saúde na rede, dizem as estatísticas).

Com relação à venda de informações para médicos, ainda é um modelo econômico com problemas. Os médicos estão muito acostumados a receber informação gratuita, também. Por isso, os melhores "sites" profissionais, como o MedScape, continuam a oferecer um enorme volume de informação, como artigos de texto completo, sem cobrar nada. No entanto, estão começando a aparecer os "sites" pagos também. O MDConsult, por exemplo, dá acesso ao texto completo de 45 livros e mais de 40 revistas médicas muito conhecidas, e foi montado pelas editoras Williams & Wilkins, Lipincott e Mosby. A assinatura a preço fixo (200 dólares por ano) dá acesso irrestrito a todo esse material, e existe uma assinatura gratuita por 10 dias. O site vem obtendo moderado sucesso de vendas. No Brasil surgiu recentemente uma iniciativa semelhante, a Bibliomed, por um médico de Belo Horizonte, que também cobra assinatura mensal.
 

Vendas a granel

Tudo isso fica pequeno em comparação com a outra modalidade de comércio eletrônico, o B-to-B ("business to business"), ou seja, a venda no atacado entre empresas (por exemplo, o laboratório vendendo medicamentos para o distribuidor e este para as farmácias). Aqui os números começam a ficar espantosos, e o lucro é real. Estima-se que o comércio B-to-B na área de saúde dos EUA possa atingir 5 a 10 bilhões de dólares em 2003, e cerca de um trilhão de dólares em outras áreas industriais e comerciais. A Internet é ideal para esse mundo, pelas facilidades que oferece para fazer leilões, escambos, localização rápida de ofertas, licitações eletrônicas, compras em grupo, etc. Na área de saúde, concentrar-se-á nos suprimentos hospitalares e distribuição de medicamentos e outros produtos médicos, e tem grande futuro. O valor médio de uma transação B-to-C é de menos de 100 dólares, enquanto que é de mais de 17 mil dólares no B-to-B. Por ai se vê.

Existem muitos problemas éticos a serem enfrentados em tudo isso. A área da saúde não mexe apenas com mercadorias e vendas de serviços, mas com a vida de seres humanos e com uma série de temas éticos que devem ser respeitados. Deve-se tomar cuidado para que a ânsia moderna por dinheiro, "money" a todo custo não deve perturbe e modifique de forma radical esses princípios básicos da medicina.
 
 

Endereços na Internet


Renato M.E. Sabbatini é doutor em ciências pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, e diretor associado doNúcleo de Informática Biomédica da UNICAMP, em Campinas, SP. É também editor científico das revistas Informática Médica e Intermedic.
Email: renato@sabbatini.com

Copyright 1999 Renato M.E. Sabbatini
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Publicação na Web: 29/Outubro/1999.

URL: http://www.sabbatini.com/renato/papers/reporter-medico-07.htm