Informática Médica

O Crescimento do Conhecimento Médico On-Line

Renato M.E. Sabbatini


Revista Médico Repórter: p. 64-65, julho de 2001.
Veja também: Índice de Artigos de Informática Médica de Renato M.E. Sabbatini


A Internet é, ao mesmo tempo, uma benção e uma praga.

Esta é, para muitos médicos, a sensação ao navegar pela primeira vez nos domínios da Web, à procura de informação médica útil e relevante. É uma benção, pois nunca, na história da Humanidade, existiu tanta informação sobre tanta coisa, instantaneamente disponível. Algumas estatísticas recentes mostram isso: existem quase 2 bilhões de documentos indexados na Web (e os especialistas acham que deve ter pelo menos o dobro disso), mais de 2.000 revistas médicas em texto completo. E aqui reside, justamente, a "praga": está cada vez mais difícil achar o que a gente quer na Internet. Felizmente, existem muitos "sites" que permitem a busca de documentos através de palavras-chave. Mas, se a pesquisa não for bem feita, e muito específica, ela retorna dezenas de milhares de indicações, e fica muito difícil e demora muito tempo achar exatamente o que se procura.

Aliás, freqüentemente se afirma que o conhecimento médico publicado está crescendo a um ritmo exponencial, ameaçando o ensino médico (que tem os mesmos seis anos de duração desde o século XII!) e levando a uma especialização extremada e precoce dos médicos.

Até que ponto isso é verdade? Como está mudando o cenário, principalmente com a entrada da Internet em cena?

Uma das melhores maneiras de saber é analisar uma tremenda base de dados de artigos científicos em medicina, chamada MEDLINE. Ela é mantida desde 1962 pela National Library of Medicine dos EUA, e atualmente está disponível gratuitamente através da Internet, o que facilita muito as pesquisas (o endereço é http://www.ncbi.nln.nih.gov/Literature e o serviço de acesso se chama PubMed). Em dezembro de 2000 continha mais de 12 milhões de artigos, publicados em mais de 4.000 revistas médicas de qualidade controlada.

O ritmo de crescimento da MEDLINE é espantoso, mesmo para os profissionais que a acompanham diariamente, como eu. Um exemplo: em 1969 ela acumulava menos de um milhão de artigos. Somente na última década foram adicionadas quase 5 milhões de novos artigos, ou cerca de 1,2 milhões a mais do que na década anterior. São quase 2.000 artigos novos por dia, 700 mil por ano! É uma verdadeira loucura, uma avalanche de informação que ninguém mais consegue dominar. Só para dar uma idéia ao leitor do que representa esse volume de informação, imagine que um médico resolvesse ler todos os artigos médicos que saem por dia na MEDLINE. Supondo que ele conseguisse ler (com folga) cerca 10 artigos completos por dia, trabalhando 6 dias por semana, ele daria conta em cerca dois meses dos 1.864 artigos que são publicados em apenas um dia. Acabando de lê-los, teria o grande susto de saber que nesse meio tempo surgiram 405.000 artigos novos esperando pela leitura!

Felizmente, ao contrário do que apregoam muitos catastrofistas, tem havido uma diminuição histórica nas taxas anuais de crescimento, que hoje estão em torno de 6% ao ano (já chegaram a ser o dobro). Mantida esta taxa, teremos 22 milhões de artigos em 2010. O maior crescimento das publicações médicas ocorreu na década dos 80s. Em 10 anos, a base aumentou 265%, o que significa a duplicação do número de artigos em apenas 3 anos e meio. Atualmente a base duplica a cada 11 anos e meio, porque vai ser cada vez mais difícil duplicar uma base tão grande.

Mas falar em duplicar a base de artigos não tem mais sentido, pois a maioria já está obsoleta. Devemos então considerar apenas conhecimento novo, ou seja, que adicione ou substitua conhecimentos anteriores. O problema é que ninguém sabe qual é a porcentagem de trabalhos publicados que faz isso, e quantos trabalhos ainda têm conhecimento corrente;

Fiz um rápido cálculo outro dia: se trabalharmos com números de 30% e 40%, respectivamente, então, matematicamente, cerca de 100% do conhecimento médico é renovado a cada 10 anos. Em outras palavras, isso significa que a taxa de obsolescência é muito grande: em apenas 5 anos (antes do estudante de medicina se formar…), 50% de tudo que já foi publicado não vale mais… O pior, como disse um famoso professor de medicina de Harvard, é que o pobre estudante não sabe qual é a metade que é obsoleta.

Isso explica porque os médicos e outros profissionais de saúde se defendem da pororoca de informação através da especialização, ou da ultra-especialização. Hoje diz-se que existem médicos especialistas nos dedos da mão, ou no tornozelo, ignorando todo o resto do corpo do coitado do paciente.

Mas dificilmente poderia ser diferente. Quer uma prova? Para ser realmente bom, o médico precisa ler regularmente os artigos cientificos que saem nas melhores revistas sobre sua especialidade. Normalmente, aliás, ele nem consegue ler tudo da especialidade inteira, a única maneira de "sobreviver" é escolher uma área menor dentro dela. Por exemplo, se ele for endocrinologista, ele teria que ler ao longo do ano de 2000 exatos 31.058 artigos que saíram na MEDLINE sobre doenças endócrinas, ou seja, mais ou menos 85 artigos por dia. O médico demoraria, neste caso, cerca de 8 dias para ler todos, findos os quais teria à sua espera uma pilha de “somente” 680 artigos para ler…

O negócio então é estreitar o foco mais ainda: se, neste caso, ele decidir todos os artigos só sobre diabetes, mesmo assim não vai dar: foram 10.111 artigos no ano 2000. Mas ler tudo sobre retinopatia diabética (uma doença de perda progressiva da visão causada pela diabetes crônica) até que dá: sairam 615 artigos por ano, ou menos do que 2 por dia. Entendeu agora porque todo mundo acaba tendo que se especializar?

Para assustar o leitor de vez, agora imagine que a MEDLINE contém os artigos de menos de 40% das revistas médicas publicadas no mundo…E que deixamos de considerar os cerca de 10.000 livros médicos novos por ano…E os 200 CD-ROMs novos… E os quase 70 mil sites contendo informação médica na Internet.. A lista se alonga mais e mais, diariamente, provocando verdadeiro desespero nos profissionais médicos. A tal ponto que alguns fazem como a proverbial avestruz: enterram solenemente a cabeça na areia e não querem nem saber. O que é uma postura errônea, pois isso vai fatalmente prejudicar a qualidade da medicina exercida por eles e levar a erros médicos e outros problemas.

A Internet veio para ajudar demais, mas ainda não é a resposta final. Como dizem os americanos, ainda estamos precisando de uma "killer app" (aplicação dominante, que mata todas as outras, comparativamente falando) nessa área…


Endereços na Internet


Renato M.E. Sabbatini é doutor em ciências pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, e diretor associado doNúcleo de Informática Biomédica da UNICAMP, em Campinas, SP. É também editor científico das revistas Informática Médica e Intermedic.
Email: renato@sabbatini.com

Copyright 2001 Renato M.E. Sabbatini
Todos os direitos reservados. Proibida a cópia para fins comerciais.

Publicação na Web: 29/Outubro/2001.

URL: http://www.sabbatini.com/renato/papers/reporter-medico-07.htm