A Internet como ferramenta de controle de qualidade científica

Mídia Fórum, são Bernardo do Campo, v3. n. 8, set. 1998.

O método de produção científica foi colocado em xeque, ao se aplicar o próprio método científico a ele. No recente Congresso de Avaliação Biomédica pelos Pares, em Praga, o Dr. Christopher Martyn apresentou um trabalho no qual identificou várias falhas no processo conhecido como análise dos pares, responsável pela legitimação da qualidade de artigos científicos a serem publicados na literatura. Dentre os problemas identificados, o mais contundente foi a incapacidade dos pares em identificar erros em artigos submetidos, sejam estes pares qualificados ou não para a tarefa. Sua conclusão é de que seria necessária uma "retificação estrutural de todo o processo de avaliação".1

Já o uso intensivo da informática, aliada às novas tecnologias de telecomunicação, em especialmente a Internet, poderá impactar fortemente o modo como se pratica a ciência hoje, particularmente na área de publicação eletrônica. Os cientistas contudo, demonstram um certo receio de utilizar a Internet como meio de interação, dado a condição anárquica em que a rede nasceu e continua se desenvolvendo. Questões como a legitimidade e a qualidade de informação, reconhecimento acadêmico e aspectos de segurança trazem questionamento quanto ao uso sério da Internet por parte dos cientistas. Cabe ressaltar, porém, que a capacidade da própria tecnologia solucionar os problemas apontados, e o surgimento de um vasto número de publicações acadêmicas on-line nos últimos anos, apontam para uma maior adesão do meio acadêmico a esta nova tecnologia.

O sistema de análise da pares nas revistas impressas tradicionais funciona de forma simples, porém falível de falhas. O editor, juntamente com o conselho editorial, escolhe árbitros para cada manuscrito, que por sua vez emitem pareceres (algumas vezes anônimos, outras vezes não) recomendando/rejeitando o artigo em questão e sugerindo revisões. A idéia por trás da análise dos pares é liberar o processo de publicação da dominação de um indivíduo particular. Coincidentemente o ponto falível deste processo é justamente o editor, ao selecionar árbitros inadequados. Outro problema, é a saturação de trabalho sofrida pelos árbitros, o que torna a avaliação extremamente lenta, outros trabalhos recebem maior prioridade, e quando a análise é feita, é feita relutantemente e com níveis de atenção inadequados, motivos pelos quais erros no artigo original não são identificados. A Internet, por sua vez, possibilitaria a circulação de arquivos eletrônicos de maneira muito mais rápida, além de possibilitar a distribuição de tarefas de forma mais equitativa, sistemática e ampla2 (pesquisa bibliográfica eletrônica, análise de citações, chamadas para pares em listas de discussões especializadas).

Neste cenário, surge o trabalho do pesquisador Stevan Harnad, que analisa criticamente o processo de implantação de revistas científicas eletrônicas e seu controle de qualidade adjacente. Segundo Harnad, a Internet, com seus grupos de discussão, arquivos documentais e mecanismos de busca poderosos aponta na direção de um enfoque "ultrademocrático" de produção e distribuição de informação. Dessa forma, a avaliação dos pares pode tomar uma forma mais dinâmica e eficiente através do uso das telecomunicações. O novo processo de publicação científica acadêmica, batizado pelo autor de "Scholarly Skywriting"3 oferece possibilidades comunicativas que a mídia impressa jamais poderia oferecer. Tal processo foi implantado experimentalmente no projeto PSYCOLOQUY (ISSN Número 1055-0143), uma revista científica eletrônica destinada à psicologia e seus campos de pesquisa associados (ciência cognitiva, neurociência, lingüística e filosofia). Os autores submetem seus artigos, sobre os quais desejam feedback de colegas ou especialistas de disciplinas relacionadas. Cada resposta de pares ao artigo é enviada rapidamente, de modo que o autor possa revisar seu trabalho, como se a discussão estivesse sendo escrita no céu (skywriting) para que todos os envolvidos a vejam. No final, são publicados o artigo, cada crítica de pares enviada e uma resposta do autor a cada crítica, devolvendo a velocidade do pensamento à produção científica, além de adicionar a ela um enfoque global e interativo, sem precedentes na história da comunicação humana. O "Scholarly Skywriting" é destinado especialmente ao estágio "piloto" da produção científica, quando a comunicação dos pares está remodelando criticamente o projeto, onde a velocidade e a interatividade da Internet oferecem o maior impacto na evolução do conhecimento, deixando para trás a inércia predominante do processo convencional.

Porém, as inovações tecnológicas não são suficientes para evitar falhas no processos científicos por si só. Resta sempre o fundamental fator humano, que se revela principalmente no processo da aceitação de artigos, condicionada por predisposições culturais e hierárquicas. Um estudo de Gans (1967)4 revela que no meio da publicação científica ocorre o fenômeno comunicacional conhecido como gatekeeping, ou seja, os editores selecionam trabalhos conforme a avaliação de parâmetros como a posição e o currículo científico dos autores. Em outra trabalho apresentado no Congresso de Avaliação Biomédica pelos Pares, o Dr. Wessely do King's College identificou a nacionalidade dos autores como grande inimiga da subjetividade, no momento em que grupos de pesquisas americanos e ingleses tendem a se ignorar. E se este fenômeno ocorre entre grupos de pesquisa localizados em países tecnologicamente avançados e de mesma língua, a situação piora muito quando se trata da produção acadêmica do terceiro mundo. Em um estudo comparativo do cientista W.W. Gibbs5, identifica-se como a produção oriunda de países emergentes como o Brasil e a Índia é sistematicamente ignorada pelas principais e mais conceituadas revistas científicas. A título de exemplo, embora 80% do mundo seja constituído de países emergentes, englobando 24,1% dos cientistas e 5,3% dos gastos em pesquisa, somente 2% da informação científica indexada é gerada por eles6. Novamente retornamos à questão das publicações eletrônicas, que surgiriam como elemento nivelador, ao permitir acesso global e instantâneo à informação e podendo ser utilizada como ferramenta de trabalho colaborativo e cooperativo entre os acadêmicos do mundo todo.

Portanto, a comunidade acadêmica internacional deve neste momento repensar e reestruturar os processos através dos quais a ciência é produzida. Somente assim, a ciência poderá ocupar o posto de caminho para a verdade e para o esclarecimento do homem, ao qual está originariamente destinada.

  1. O Progresso Metódico, The Economist.
  2. Harnad, S. (1996) Implementing Peer Review on the Net: Scientific Quality Control in Scholarly Electronic Journals. In: Peek, R. & Newby, G. (Eds.) Scholarly Publishing: The Electronic Frontier. Cambridge MA: MIT Press. Pp. 103-108.
  3. Harnad, S. (1991) Post-Gutenberg Galaxy: The Fourth Revolution in the Means of Production of Knowledge. Public-Access Computer Systems Review 2 (1): 39 - 53 (also reprinted in PACS Annual Review Volume 2 1992; and in R. D. Mason (ed.) Computer Conferencing: The Last Word. Beach Holme Publishers, 1992; and in: M. Strangelove & D. Kovacs: Directory of Electronic Journals, Newsletters, and Academic Discussion Lists (A. Okerson, ed), 2nd edition. Washington, DC, Association of Research Libraries, Office of Scientific & Academic Publishing, 1992).
  4. Wolf, M., (1993) Teorias da Comunicação, Portugal, Ed. Presença, pág. 161.
  5. Gibbs, W.W. 1995. Lost science in the Third World. Scientific American 273 (August):92.
  6. Canhos, V.P. et al - Electronic Publishing and Developing Countries: Trends, Potential and Problems, Ibid.
    [ http://associnst.ox.ac.uk/~icsuinfo/canhos.htm]


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