Na época, este era um conceito muito difícil de ser aceito. Primeiro, porque ia contra os dogmas religiosos, que ainda ocupavam um lugar central no comando das sociedades ocidentais, especialmente a Inglaterra. Darwin tinha tido uma educação teológica em Cambridge, estava destinado a ser um pároco da Igreja Anglicana, e descendia de uma próspera família de proprietários rurais, profissionais liberais e industriais. Seus amigos eram todos conservadores ou ligados à religião e ao governo, fortemente opostos à noção da evolução das espécies como um mecanismo independente do Criador. Segundo, porque temia-se que, ao aceitar esse conceito, o homem perderia seu lugar especial na Criação, rebaixando-se a ser mais um animal entre os animais, e "liberando os instintos mais baixos" da população, que poderia se revoltar contra o governo, e instaurar a anarquia tão temida pelos governantes (não devemos nos esquecer que a influência da Revolução Francesa ainda se fazia sentir, e que o socialismo acabava de nascer como movimento político e social, ameaçando tirar o poder dos velhos privilégios da monarquia, da elite econômica, etc.).
Em terceiro lugar, porém, havia um argumento científico sólido contra a hipótese avançada por Darwin e seus seguidors: até então não havia nenhuma evidência concreta de que o registro fóssil mostrasse ter havido essa progressão de proto-homens ("hominídeos").
O castelo cuidadosamente montado pelos
opositores a Darwin começou a desmoronar quando descobriram-se os
primeiros esqueletos de um ser evidentemente muito mais primitivo que o
Homo sapiens sapiens (a espécie moderna do ser humano), o Homem
de Neandertal. Descoberto por escavações em minas no vale
do rio Neander, na Alemanha (Tal significa vale em alemão), as observações
mostravam um ser com postura ereta, corpo e membros praticamente iguais
aos nossos, mas com um crânio com semelhanças aos de um gorila.
Essa descoberta, embora tenha sido refutada na época como possivelmente
pertencendo a seres humanos deformados ou aleijões, acabou se consolidando
com achados em várias outras partes da Europa e Oriente Médio,
e provocou uma enorme polêmica. Mostrou, pela primeira vez, que havia
o registro histórico de um ser muito semelhante ao homem, que não
mais existia, e que podia ser um passo intermediário entre macacos
e homens. Deu um grande impulso à aceitação das teorias
de Darwin pelos cientistas e incentivou a busca desenfreada por homens
cada vez mais primitivos, o que veio a acontecer somente no século
XX, primariamente na África, mas também na Ásia e
Oceania.
Crânio do Australopithecus afarensis, um dos mais antigos hominídeos encontrados |
Crânio do Australopithecus africanus, um hominídeo mais recente que o afarensis. |
Crânio do Homo habilis, uma das primeiras espécies africanas do gênero Homo |
Crânio de um Homem Neandertal (que já era um Homo sapiens) |
Imagens: www.skullduggery.com |
A ciência chegou à conclusão que realmente o homem evoluiu gradativamente a partir de espécies que hoje sabemos terem se originado na África sub-equatorial, entre 5 a 6 milhões de anos atrás. A imaginação fértil dos vitorianos elaborou o conceito do "elo perdido", ou seja, a espécie que teria sido comum aos homens aos demais antropóides, gerando duas linhas de "primos" muito próximos. Esse homem-macaco ainda não foi encontrado até hoje, mas descobertas recentes feitas pelos cientistas na África têm empurrado cada vez mais para o passado a existência dessa espécie. Por outro lado, descobriu-se que o Neandertal não é nosso antepassado, mas sim uma sub-espécie que surgiu em paralelo com o Homo sapiens sapiens (também chamado de Cro-Magnon, a partir de uma localidade da França onde se acharam fósseis), e que se extinguiu cerca de 60 mil anos atrás, por motivos desconhecidos. Ambos descendem de duas espécies de homens mais primitivos, que entre um milhão a 500 mil anos atrás começaram a emigrar da África para outros continentes, o Homo erectus e o Homo habilis. O Homo sapiens sapiens provavelmente tem apenas 100 mil anos de existência como espécie independente, um período extremamente curto em termos geológicos ou mesmo para a idade total do gênero Homo. Estamos há muito pouco tempo na superfície deste planeta...
Árvore genealógica do Homo sapiens. O Ardipithecus ramidus é o hominídeo mais antigo encontrado. O ponto de interrogação marca o que seria a espécie tronco comum entre macacos antropóides e o gênero Homo.
Uma conclusão muito impactante do estudo dos hominídeos é que provavelmente existiram muitas espécies de nossos antecessores que se extingüiram sem deixar marcas. A linha sobrevivente, em determinadas épocas históricas, chegou a ter um número extremamente reduzido de indivíduos. Um estudo recente do RNA mitocondrial (um tipo de ácido nucleico que é transmitido apenas através da linha feminina, diferentemente do DNA, que tem componentes maternos e paternos) mostrou que houve uma época no passado que existiam apenas cerca de 40.000 seres humanos em toda a face da Terra. Qualquer grande desastre climático ou epidemia teria inviabilizado essa espécie e eu não estaria escrevendo hoje no Correio, ou vocês lendo minhas colunas... Essa é uma noção simplesmente fascinante para mim. Esses estudos de biologia molecular também evidenciaram que toda a humanidade descende provavelmente de não mais do que seis indivíduos, que habitaram a África meridional, sendo que uma dessas mulheres (que poderiamos chamar, apropriadamente, de Eva), é responsável por 60% de todos os genomas da humanidade atual), enquanto que outras cinco são responsáveis pelos 40% restantes!
Chegaremos um dia a descobrir o "elo perdido". Não se sabe. Quanto menor o número de indivíduos que chegaram a existir dessa espécie, mais raro é o registro fóssil, e menores as chances de o descobrirmos. Existem limites para a preservação desses fósseis por tantos milhões de anos. Mas, se for feita, será uma descoberta fundamental para a recuperação da nossa história como espécie.
Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 15/12/2000.
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