No Tibete, a população tem um método infalível para interromper uma eclipse da lua. Sobem todos nos tetos de suas casas e começam a bater palmas e gritar em uníssono, para enxotar os maus espíritos que estão roubando a luz dos astros. Funciona perfeitamente toda as vezes ! Depois de alguns minutos de gritaria, a sombra desaparece e a lua retorna em toda sua glória. Os tibetanos, naturalmente, acreditam que sua intervenção coletiva é o que "salvou" a lua da extinção permanente.
Parece ridículo para nós, ocidentais esclarecidos e vivendo em plena era da ciência e tecnologia, que uma superstição tola como essa tenha lugar em nossa sociedade. No entanto, ela ocorre milhares de vezes por dia em nossas vidas ! Basta ver a declaração recente de um cardeal brasileiro famoso de que foram as rezas de sua congregação e as danças rituais pelos pajés indígenas que apagaram os incêndios de Roraima. A mesma coisa acontece com os milagres e premonições. O fato de ter chovido pode ter sido uma mera coincidência, mas as pessoas acreditam acham que houve uma relação causal entre ambas, e não temporal, como é o caso. Não difere em nada, portanto, dos tibetanos.
Esse tipo de falácia é muito comum e recebe o nome em latim, de "post hoc ergo propter hoc", o que significa "após isso, então por causa disso". Ela é baseada na noção errônea que se uma coisa acontece após outra, o primeiro evento foi a causa do segundo. Muitos eventos acontecem de forma seqüencial, sem que eles sejam correlacionados causalmente, por isso nosso cérebro é enganado. Ele não foi "feito" pela natureza para detectar correlações causais, mas detecta facilmente correlações temporais. Portanto, podemos dizer que o efeito "post hoc" é a base da maioria das superstições e da credulidade irracional. É um problema sério, que interfere de forma muito extensa até mesmo em conclusões supostamente científicas.
Toda a medicina alternativa e uma parte razoável da medicina convencional devem muito ao fenômeno "post hoc". Por exemplo, uma pessoa fica resfriada, toma umas gotinhas homeopáticas, e fica boa de novo em dois ou três dias. A pessoa (e o médico !) atribuem a cura ao fato de se ter tomado o remédio. No entanto, se não tivesse tomado nada, o resfriado passaria espontâneamente dois ou três dias depois...
O pior é que um grande número de trabalhos supostamente "científicos", publicados em revistas médicas, não têm nenhuma validade em suas afirmações, justamente por não usarem o método consagrado para afastar os perigos do "post hoc", que seria comparar os resultados obtidos com um grupo que toma o remédio, com outro que nada toma. Se não houver alguma diferença significativa, a relação causa-efeito não existe, e o que se constata é uma mera correlação temporal, uma coincidência, enfim.
Infelizmente, a própria estrutura da imprensa e da TV, e a maneira com que as mídias de massa funcionam, favorece ao extremo a credulidade baseada no princípio do "post hoc"e outras patologias do raciocínio (os filósofos reconhecem muitas, como "non sequitur", hipérbole, "argumentum ad ignorantiam", e outros, que um dia explicarei para vocês, se houver interesse). Por exemplo, recentemente o Correio Popular noticiou que oráculos e astrólogos estão afirmando que as várias mortes de pessoas importantes neste ano (Sérgio Motta, Luiz Eduardo Magalhães, Nelson Rodrigues, Octavio Paz e outros) não seriam coincidência, mas sim um "alerta", um indicativo das agruras que nos aguardam neste fim do milênio. Pois bem, quem fez a reportagem não se preocupou em ouvir o "outro lado", que seria, no caso, qualquer cientista especializado em estatística. Seria muito fácil comprovar que não existe nenhuma distribuição preferencial de mortes de gente importante no começo, meio ou final do século. No entanto, não dá manchete escrever "Cientistas dizem que não está morrendo mais gente importante do que o normal" ! É o tipo da notícia em que uma afirmação no sentido da negatividade oferece pouca atratividade para os editores que montam o jornal ou o programa de TV.
Com isso, a imprensa ajuda a perpetuar a credulidade, essa sim, típica deste final de século.
A ciência já foi grande aliada da religião, quando o conhecimento era criado e moldado de forma a satisfazer os interesses dogmáticos da fé. Não podia haver experimentação e observação livre, independente e objetiva, pois isso ameaçava o interesse de se preservar "os desígnios de Deus" e a infalibilidade de seus auto-denominados representantes na Terra. Todo mundo conhece os casos de Giordano Bruno, Galileu e outros mártires do conhecimento científico liberado do dogma. Aristóteles e Ptolomeu eram os paradigmas para o retrato eclesiástico do Universo. Os sacerdotes do Egito, Mesopotâmia, maias, astecas e incas, etc., usavam o seu avançado conhecimento sobre os planetas e as eclipses, que conseguiam prever com muitos anos de antecedência, para comprovar para o povão que tinham um canal direto com os deuses e eram capaz de interpretar corretamente os seus desígnios.
Uma anedota sintomática da grande batalha entre a crença e o conhecimento científico é aquela em que Aristóteles escreveu que as mulheres tinham menos dentes na boca do que os homens. Segundo ele, tinham que ter, pois as mulheres eram consideradas inferiores. O debate se prolongou por toda a Idade Média, e nenhum monge ou cientista ousava discordar do "grande" Aristóteles, a fonte de todo o conhecimento da Antiguidade. Assim, a autoridade se sobrepunha à observação objetiva. "No entanto’, como disse jocosamente Isaac Asimov: "a pendenga teria sido resolvida se o Sr. Aristóteles tivesse pedido para a Sra. Aristóteles abrir a boca...".
Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 24/4/98.
Autor: Email: renato@sabbatini.com
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