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O genoma e o futuro

Renato Sabbatini

O anúncio oficial de que o seqüenciamento do genoma humano foi terminado três anos antes do prazo previsto gerou uma enorme onda de artigos e comentários nos meios de comunicação, como poucos eventos científicos tinham conseguindo, antes. O motivo é óbvio para todos: trata-se de um marco na história da humanidade, pois a partir de agora poderemos utilizar essa imensa biblioteca de 3 bilhões de "letras" para tentar entender como os genes comandam a estrutura e a função do organismo, ou até mesmo como eles influenciam o nosso comportamento, emoções e estrutura social. O segundo passo será usar esse conhecimento para mudar os nossos genes à nossa vontade, ou até o limite permitido pela ética e pela moral, seja para curar doenças de origem ou propensão genética, seja para modificar coisas como cor dos olhos, inteligência, resistência a doenças, etc.

Uma coisa interessante é que o primeiro artigo que escrevi para esta coluna no Correio Popular foi sobre este mesmo tema: o limite ético do conhecimento científico humano. O artigo, para quem não se lembra, recebeu o título de "É Melhor Não Saber", e se referia a uma frase do Papa, que ouvi em Roma, ao receber os cientistas que participavam de um congresso médico sobre medicina fetal em 1990. O Papa achava (e acho que ele ainda acha) que existem coisas que a ciência deveria não tentar saber, pois isso criaria "tentações e pecados", como a vontade de abortar um feto que, testado geneticamente ainda em útero, mostrasse ter alguma característica ou tendência que fosse do desagrado dos seus pais ou da sociedade. Se isso um dia acontecer, disse ele, a culpa moral será da ciência e de seus seguidores, e não será muito diferente do genocídio cometido por Hitler em nome da eugenia (melhoria da raça), ao mandar matar centenas de milhares de doentes mentais, deficientes físicos, doentes graves, etc. (sem falar nas raças e etnias que o desagradavam). Uma afirmação altamente polêmica, que poderá ter como resultado a paralisia dos cientistas imbuidos de fé religiosa (mas não a marcha da ciência, que é inexorável).

De lá para cá, a coisa não mudou substancialmente do ponto de vista dos dilemas da bioética: a briga continua entre os que são a favor e contra qualquer intervenção direta no patrimônio genético do ser humano, a não ser que seja para fins médicos claros; ou até mesmo no desenvolvimento de alimentos transgênicos. A ciência da genômica, entretanto, continuou avançando espetacularmente, desmentindo todas as previsões feitas. E vai continuar acontecendo dessa forma, pois o auxílio da bioinformática (aplicações da Informática na biologia molecular), novos equipamentos e tecnologias, como a Internet, aceleram extraordinariamente a velocidade das descobertas e de sua divulgação, e dotam os cientistas de um arsenal impressionante de novas armas. Por exemplo, os biólogos moleculares, quando descobrem um novo pedaço do código genético, imediatamente publicam o resultado em um banco de dados na Internet, o GenBank, que contém todos os códigos genéticos de todas as espécies vivas. Em apenas 24 horas ele está disponível e pode ser visto de qualquer lugar do mundo. Em apenas um mês, recentemente, o GenBank recebeu 500 milhões de bases (como é o nome dado às quatro substâncias que formam o "alfabeto" do grande livro da vida: adenina, guanina, citosina e timina, na molécula do DNA, ou ácido deoxirribonucleico), o que é espantoso. O endereço do site é www.ncbi.nlm.nih.gov.

O mais espantoso, no entanto, é que a gama completa das descobertas científicas fundamentais, que foram desde a determinação da estrutura tridimensional do DNA e seu papel no código genético, até o seqüenciamento total do genoma humano, foram feitos em menos de 50 anos, e que praticamente todos os cientistas que as fizeram ainda estão vivos, inclusive James Watson e Francis Crick, os dois ingleses responsáveis pela primeira descoberta, em 1953 (Watson foi também o primeiro diretor do Projeto Genoma Humano).

Nas próximas décadas, a ciência se dedicará a um esforço mais prodigioso e difícil ainda: desvendar para que serve essa sopa de 3 bilhões de letras que temos em nossas mãos. Achar no meio dela um gene, ou seja, o pedaço de código que comanda a síntese de uma proteína específica na maquinaria da célula, é bem difícil. É como procurar uma agulha no palheiro, sem saber como é a agulha. Os métodos atuais são bastante lentos e ineficientes, e são atrapalhados pelo fato de que possivelmente mais de 90% das seqüências recém-descobertas do DNA não tem nenhuma função, ou seja, são resqüicios fósseis de genes que não utilizamos mais e que foram perdidos ao longo da evolução. Os cientistas o chamam de "junk DNA", ou lixo genético, pois a célula tem mecanismos fabulosos para acrescentar genes e modificá-los de acordo com a evolução, mas não tem como apagá-los do genoma. Então eles são simplesmente desativados, mais ou menos como uma palavra riscada em um texto, que ainda podemos enxergar, mas que não serve para mais nada.

Então há um certo exagero da mídia em saudar esse evento como o final de uma era. Ele é apenas um passo intermediário, muito significativo, sem dúvida, e com um enorme valor simbólico para a humanidade. Mas o trabalho real ainda está por vir. Teremos mais algum tempo, ainda, para discutir as implicações éticas do desvendamento final do genoma (se é que conseguiremos isto ainda dentro no século XXI). Mas, desconfio que continuaremos imobilizados nesse tremendo atoleiro por muito tempo ainda, o que poderá levar a conflitos e sofrimentos, ao contrário do desejam que os bem-intencionados cientistas da genômica humana e da medicina molecular!

 

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Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, .

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