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O livro da vida

Renato Sabbatini

Na segunda semana de fevereiros de 2001 o mundo assistiu a um evento de profundo significado simbólico: a publicação completa dos primeiros trabalhos das equipes de cientistas que desvendaram o código genético completo dos genes humanos.

É o resultado glorioso de uma colaboração internacional (o Projeto Genoma Humano), liderado pelos EUA, e que começou em 1990. Graças aos avanços tecnológicos, as 3,3 bilhões de bases de DNA foram desvendadas e os genes (seqüências especificas de DNA, capazes de comandar a síntese das proteínas que realizam as funções das células e fazem parte de sua estrutura) que nelas se escondem começaram a ser descobertos. É uma descoberta científica emocionante, "tão significativa quanto a viagem à Lua, a fissão do átomo e a invenção da roda", segundo o editorial da revista "Nature", centenária publicação científica onde os trabalhos foram publicados.

 
Mas o resultado reservou algumas surpresas, tanto para a ciência quanto para o público. Para começar, o aclamado "livro da vida" não é nem um pouco parecido com um livro: não pode ser lido como uma seqüência do começo ao fim, tem 95% de códigos inativos ou sem função (alcunhado de "DNA lixo"), e é extremamente fragmentado (a maioria dos genes é formado por dezenas e até centenas de pedaços menores, chamados "exons", que se espalham pelo cromossoma).
A analogia mais apropriada não é a de um romance, mas sim a de um dicionário meio maluco, no qual aquilo que estamos procurando está escondido no meio de milhares de letras aleatórias, sem o menor sentido. O trabalho dos biólogos está sendo enlouquecedoramente complexo: estima-se que temos cerca de 32 mil genes, dos quais 22 mil já foram identificados. O trabalho ainda está longe de terminar, portanto. Ainda segundo o editorial do número histórico da revista "Nature" (que está disponivel gratuitamente na Internet, no endereçohttp://www.nature.com/genomics/human/), "a revolução real em biologia celular não está na decodificação do genoma, mas sim na observação dos padrões de atividade dos genes e de sua interação dentro dessas seqüências".

O funcionamento do DNA é um caos de interações complexas, sem nenhuma lógica, pois elas foram sendo construídas de acordo com a história evolutiva dos organismos que nos precederam. Um gene A pode ativar um gene B, que produz uma proteína C, que desativa um gene B, que coopera com o gene A, por exemplo. Milhares de seqüências do nosso DNA foram herdadas de outros organismos, sendo que algumas ainda funcionam, outras não. Os pesquisadores também ficaram surpresos com o enorme número de genes de vírus e bactérias inseridos no meio do nosso DNA: eles são chamados de "DNAs parasitários" e constituem uma verdadeira história infecciosa do homem.

Outra surpresa foi o número relativamente pequeno de genes encontrados. Estimativas anteriores tinham colocado esse número na casa dos 100 mil genes, e tinha gente que achava que tínhamos até mais do que isso. Os 32 mil genes, que parece ser o número mais provável (o número exato ainda não é conhecido) colocam o ser humano na mesma categoria que algumas plantas simples e animais, como o rato. Existe uma ameba (ser unicelular) que tem 200 vezes mais genes que o ser humano. Isso parece ser um paradoxo: a espécie Homo sapiens sapiens é muito nova, evolutivamente falando, assim como os primatas em geral (a linha humana deve ter começado há uns 4 ou 5 milhões de anos atrás, apenas, o que é menos que um "piscar de olhos" em termos geológicos. Existem seres vivos hoje que estão estáveis geneticamente há mais de 100 milhões de anos). Alimentamos a convicção, ou o devaneio, que somos a espécie mais complexa do planeta, só porque temos o melhor e mais complexo cérebro, e somos dotados de inteligência, mas isso não é verdade: como se vê, não existe relação entre o número de genes e a complexidade do organismo, pois o sistema todo funciona basicamente em nível celular, e não organísmico.

Ainda falta muita coisa para completarmos o conhecimento completo do "livro da vida". A primeira delas é o "transcriptoma", ou o conjunto completo de seqüências de moléculas de RNA (ácido ribonucleico), que é o intermediário usado pela célula para sintetizar proteinas a partir das seqüências do DNA (o genoma). Também teremos que fazer um esforço enorme para identificar e caracterizar todas essas proteínas codificadas pelo genoma, ou seja, o que está sendo chamado de "proteoma". Descobrir para que serve e como funciona cada um dos genes, em conjunto ou isoladamente, também será um grande desafio interdisciplinar para as próximas décadas. Mas os cientistas não duvidam que um dia fatalmente chegaremos a esse conhecimento completo. Quando isso acontecer, as conseqüências serão revolucionárias para a espécie humana. Seremos a primeira (e única) forma de vida a controlar sua própria evolução…

Também seremos capazes de gerar vida artificial, ou sintética. Já existem grupos de cientistas que estão produzindo células simplificadas, a partir de conjuntos sintéticos de genes copiados de diversos organismos. Não vai demorar muito, estaremos brincando de Deus, e produzindo células que nunca existiram naturalmente, e talvez até sintetizando organismos multicelulares completos, que poderão ser patenteados e explorados comercialmente. Esses organismos artificiais também serão importantes "laboratórios" para a realização de experimentos, levando a um maior entendimento de como funciona a maquinaria celular.

Tenho sempre repisado nesta coluna as importantes repercussões éticas e morais de tudo isso. O conhecimento completo do genoma/transcriptoma/proteoma, juntamente com a invenção de técnicas para neles intervir, dará o ser humano um controle absoluto sobre si mesmo. Se não soubermos fazer uso desse poder de forma sábia, estamos entrando em uma grande, e talvez, catastrófica, encrenca.

A ciência se orgulha de tudo o que se descobriu sobre a natureza, da mecânica quântica à física das estrelas. Muitas dessas descobertas geraram o desenvolvimento de tecnologias de enorme impacto e influência sobre nossas vidas, da microeletrônica aos plásticos, do motor a jato às viagens espaciais, das tecnologias agrícolas às cirurgias de transplante de órgãos. Mas nada se compara, nem remotamente, às conseqüencias da engenharia genética e da medicina molecular, as quais, calcadas no mapeamento dos cromossomas e dos genes humanos, têm o potencial de literalmente mudar o próprio ser humano, sua natureza básica, o que é e o que é capaz de fazer.

A primeira grande conseqüência será provavelmente a extinção total de grande parte das doenças genéticas (causadas por malfuncionamento dos genes que controlam nosso corpo), inclusive vários tipos de defeitos e malformações, doenças metabólicas (como a fenilcetonúria). Isso será feito em dois níveis: o primeiro, ainda em nível de embrião, serão feitos testes genéticos sobre a existência de genes capazes de causar doenças. O mais simples será eliminar o embrião que apresentar alguma doença séria, como já é feito em muitos países, mas se os pais objetarem por motivos éticos ou religiosos, poderá ser feita uma intervenção visando modificar o gene e retorná-lo à codificação de normalidade, antes de permitir o desenvolvimento posterior em feto. A segunda forma será a engenharia genética a partir da intervenção sobre as células de um adulto, o que é muito mais difícil e apresenta maiores riscos. É a chamada "terapia gênica", que até agora tem apresentado resultados bastante polêmicos e restritos, pois dependem da eficácia das tecnologias de mudar a ação dos genes em seres humanos já desenvolvidos e portadores da doença. No entanto, não há dúvidas de que essas tecnologias um dia se aperfeiçoarão até o ponto em que serão procedimentos de rotina, realizados em consultório.

Outro impacto importante da revolução genômica será a do aperfeiçoamento das funções e estruturas normais do corpo. Não se trata de corrigir problemas de saúde, portanto, do ponto de vista ético, é uma coisa muito mais problemática (e inaceitável para muita gente, religiosa ou não). Por exemplo, modificar genes que influenciam a inteligência da criança que vai nascer, aumentando-a. Ou programar a cor dos olhos, da pele e dos cabelos. Ou mudar tendências genéticas de temperamento, personalidade, preferências sexuais, etc. Até aqui, tudo relativamente bem, pois afinal são coisas que ocorrem naturalmente nos seres humanos, e é apenas uma questão de aumentar, diminuir ou trocar. Já tive a oportunidade de escrever nesta página sobre uma das mais polêmicas, mas que virá inevitavelmente, que é a de manipular os genes da morte e da longevidade.

Mas o terceiro aspecto da engenharia genética é o mais explosivo de todos, de vários pontos de vista (éticos, médicos, econômicos, humanos e sociais): é a inserção artificial de características funcionais e estruturais no ser humano, que não existem ou que pertencem a outras espécies animais.  Por exemplo, dotar um ser humano de visão noturna por infravermelho, semelhante à dos gatos. Ou colocar dois dedos a mais em cada mão. Ou dar a alguns órgãos a capacidade de se regenerarem automaticamente toda vez que houver uma lesão. Ou permitir que o ser humano viva confortavelmente em ausência total de gravidade (astronautas sob medida...). A imaginação e as possibilidades são infinitas.

Faremos tudo isso? Não tenho a menor dúvida que sim, pois a história mostra que se existe alguma coisa que pode ser feita, inevitamente ela será feita, por alguém, em algum lugar ou tempo histórico. Os conceitos éticos e morais que temos hoje, evoluiram extraordinariamente em poucas décadas, sob o impacto das descobertas científicas e das inovações tecnológicas. Por exemplo, a maioria da população não acha nada demais tomar um medicamento para impedir a gravidez, quando isso era inaceitável moralmente há menos de 50 anos atrás. O mesmo vai acontecer com as novas biotecnologias. Podem anotar, e voltem a ler esse artigo dentro de 10 anos, no máximo. Verão que tenho razão.

 
 
 
 
"The human genome underlies the fundamental unity of all members of the human
family, as well as the recognition of their inherent dignity and diversity. In a
symbolic sense, it is the heritage of humanity."
Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights
 [O genoma humano representa a unidade fundamental de todos
os membros da família humana, assim como o reconhecimento de sua
dignidade e diversidade inerentes. Em um sentido simbólico, é a
herança da humanidade]

Para Saber Mais


Publicado em: Jornal Correio Popular, Campinas, 16/2/2001 e 23/2/2001.
Autor: Email: renato@sabbatini.com

WWW: http://renato.sabbatini.com
Jornal:http://www.cosmo.com.br


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